Opinião

Mercado de gás natural – dois anos depois

O país está no momento de pisar no acelerador do investimento em infraestrutura para o gás natural, visto que em breve pode ser atropelado pelo hidrogênio verde

Por Cid Tomanik

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Após dois anos da promulgação do Novo Marco Legal do Gás Natural, houve mudanças no mercado de gás natural? Veja alguns pontos importantes.

 A abertura do mercado

Com a mudança de Governo ocorrida no início deste ano, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) poderá rediscutir alguns termos do Termo de Compromisso de Cessação (TCC), celebrado em 2019, com a Petrobrás.

Esse TCC foi o fato relevante e determinante para abertura do mercado, mas, caso os seus termos sejam rediscutidos por ingerência política, poderá gerar insegurança jurídica no mercado.

Incumbe à ANP

A Nova Lei do Gás Natural (LGN) estabeleceu a Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis – ANP, como órgão regulador e fiscalizador das atividades econômicas da indústria do petróleo, gás natural, seus derivados e biocombustíveis. Nesse sentido, o Legislador ordenou no texto legal os pontos que a Agência deveria regular, tais como:

  1. (Art. 2º) O proprietário ou operador de instalações de escoamento, processamento, transporte, estocagem e terminais de Gás Natural Liquefeito (GNL) deverá disponibilizar, em meio eletrônico acessível aos interessados, informações sobre as características de suas instalações, os serviços prestados, as capacidades disponíveis, os dados históricos referentes aos contratos celebrados, às partes, aos prazos e às quantidades envolvidas.
  2. (Inciso IV do Art. 3º) Autoimportador: agente autorizado a importar gás natural que, nos termos da regulação da ANP, utiliza parte ou a totalidade do produto importado como matéria-prima ou combustível em suas instalações industriais ou em instalações industriais de empresas controladas e coligadas;
  3. (Inciso V do Art. 3º) Autoprodutor: agente explorador e produtor de gás natural que, nos termos da regulação da ANP, utiliza parte ou totalidade de sua produção como matéria-prima ou combustível em suas instalações industriais ou em instalações industriais de empresas controladas e coligadas;
  4. (Inciso X do Art. 3º) Certificação de independência do transportador: procedimento para verificação do enquadramento do transportador nos requisitos de independência e autonomia, consoante regulação da ANP;
  5. Entre outros.

Aos poucos, a referida Agência vem regulando as matérias. O rigor do processo decisório das agências reguladoras, estabelecido na Lei Federal nº 13.848/2019[i] e seu regulamento, o Decreto Federal nº 10.411/2020[ii], torna demorada a regulamentação dos temas

Outorga de Autorização

A exploração das atividades por meio de outorga de autorizações foi, sem dúvida, grande avanço em relação à legislação anterior.

Sistemas de transporte de gás natural

A atividade econômica preferida do Mercado é o transporte de gás natural por gasoduto. Nesse sentido, o primeiro tema a ser regulamentado pela ANP foi o “Sistemas de Transporte de Gás Natural”, previsto no Art.13 e § 1º da LGN:

Art. 13.  A malha de transporte poderá ser organizada em sistemas de transporte de gás natural, nos termos da regulação da ANP.

§ 1º Os serviços de transporte de gás natural serão oferecidos no regime de contratação de capacidade por entrada e saída, e a entrada e a saída de gás natural poderão ser contratadas independentemente uma da outra.

A contratação do Serviço de Transporte é conduzida pelo regime de transporte, conforme a diretriz da Resolução CNPE nº 16/2019[iii]. Assim, os novos contratos de serviço de transporte de gás natural serão oferecidos no regime de contratação de capacidade por entrada e saída, a exemplo dos contratos firmados no âmbito das Chamadas Públicas 01/2019[iv] e 02/2020[v].

Em outubro de 2021, a ANP publicou o Edital de Chamada Pública nº 03/2021 do Gasoduto Bolívia-Brasil, para Contratação de Capacidade de Transporte de Gás Natural referente ao Gasoduto Bolívia-Brasil, sob a égide da nova LGN.

A atividade de transporte de gás natural por meio de condutos ensejou uma atenção maior por parte dos Senhores Legisladores. As alterações trazidas por esse novo texto legal irão, certamente, promover essa atividade.

A alteração do modelo de outorga da atividade, que passou de concessão para autorização, agilizará a construção e operação de gasodutos de transportes.

Espécies de gasodutos de transporte

Esse tema, sem dúvida nenhuma, é o que está gerando estresse no mercado:

Art. 7º Será considerado gasoduto de transporte aquele que atenda a, pelo menos, um dos seguintes critérios:

I – gasoduto com origem ou destino nas áreas de fronteira do território nacional, destinado à movimentação de gás para importação ou exportação;

II – gasoduto interestadual destinado à movimentação de gás natural;

III – gasoduto com origem ou destino em terminais de GNL e ligado a outro gasoduto de transporte de gás natural;

IV – gasoduto com origem em instalações de tratamento ou processamento de gás natural e ligado a outro gasoduto de transporte de gás natural;

V – gasoduto que venha a interligar um gasoduto de transporte ou instalação de estocagem subterrânea a outro gasoduto de transporte; e

VI – gasoduto destinado à movimentação de gás natural, cujas características técnicas de diâmetro, pressão e extensão superem limites estabelecidos em regulação da ANP.

§ 1º Fica preservada a classificação do gasoduto enquadrado exclusivamente no inciso VI do caput deste artigo que esteja em implantação ou em operação na data da publicação desta Lei.

§ 2º Gasoduto e instalações enquadrados exclusivamente no inciso II do caput deste artigo destinados à interconexão entre gasodutos de distribuição poderão ter regras e disciplina específicas, nos termos da regulação da ANP, ressalvadas as respectivas regulações estaduais.

Art. 8º Os gasodutos de transporte somente poderão movimentar gás natural que atenda às especificações estabelecidas pela ANP, salvo convenção em contrário entre transportadores e carregadores, previamente aprovada pela ANP, que não imponha prejuízo aos demais usuários.

Art. 9º A ANP, após a realização de consulta pública, estipulará a receita máxima permitida de transporte, bem como os critérios de reajuste, de revisão periódica e de revisão extraordinária, nos termos da regulação, e essa receita não será, em nenhuma hipótese, garantida pela União.

Parágrafo único. As tarifas de transporte de gás natural serão propostas pelo transportador e aprovadas pela ANP, após consulta pública, segundo critérios por ela previamente estabelecidos.

A ausência de regulamentação da ANP do disposto no inciso VI do Artigo 7º da Lei 14.134/2021: “gasoduto destinado à movimentação de gás natural, cujas características técnicas de diâmetro, pressão e extensão superem limites estabelecidos em regulação da ANP” está gerando diversas definições por parte de agentes e agências reguladoras.

No artigo do jornalista Felipe Salgado, publicado no diário PetróleoHoje da Editora Brasil Energia, de 23/9/2021, intitulada “Subida da Serra é gasoduto de transporte, afirma ANP”, Felipe apontou que:

A Diretoria Colegiada da ANP fechou entendimento de que o projeto do gasoduto Subida da Serra, da Cosan, que interligará o Terminal de GNL no Porto de Santos, à malha de distribuição da Comgás, não é um gasoduto de distribuição, mas de transporte. [...]

Diante disso, não cabe à Agência Reguladora de Serviços Públicos do Estado de São Paulo (ARSESP) aprovar a implantação do gasoduto, mas à ANP. Por ter características de um gasoduto do transporte, a regulação e fiscalização de sua construção e operação está sob competência federal, da União.

[...]

Embora a construção do Subida da Serra tenha sido autorizada pela Arsesp como um gasoduto de distribuição, a própria agência reguladora paulista admite, na Nota Técnica Final 0030-2019, que “o projeto tem características operacionais que o assemelham a um gasoduto de transporte, com 31,5 km de extensão em tubos de aço de 20 polegadas, pressão de 70 bar, e capacidade de movimentar até 16 milhões de metros cúbicos de gás por dia”.

No caso, ao estabelecer que o inciso VI do Artigo 7º é de alçada da ANP, para regular, a LGN estabeleceu uma matéria de competência privativa da União. Assim, a ausência da regulamentação da matéria pela ANP não justifica a invasão na competência da União, por parte de um Decreto Estadual[vi].

Em vários países há definições claras entre transporte e distribuição e, em alguns casos, está definido em texto legal, como na Espanha. Uma das diferenças existentes é a pressão de operação dos dutos. Na distribuição, a pressão de operação máxima é inferior a 16 bar, enquanto no transporte é superior a 16 bar.

El papel de cada uno de los sujetos participantes en el sistema gasista queda establecido en la Ley de Hidrocarburos:[vii]

Los transportistas son sociedades autorizadas para la construcción, operación y mantenimiento de instalaciones de regasificación de gas natural licuado, de transporte o de almacenamiento básico de gas natural. 7

[...]

Los distribuidores construyen, operan y mantienen instalaciones de distribución destinadas a situar el gas en los puntos de consumo, pudiendo construir, mantener y operar, además, instalaciones de la red de transporte secundario.8

____________________________

7 El sistema gasista incluye todas las instalaciones de la red básica, las redes de transporte secundario, las redes de distribución, los almacenamientos no básicos y el resto de instalaciones complementarias. La red básica de gas natural está integrada por gasoductos de transporte primario de gas natural a alta presión (presión máxima de diseño igual o superior a 60 bares), las plantas de regasificación de gas natural licuado y las plantas de licuefacción de gas natural, los almacenamientos básicos de gas natural, las conexiones de la red básica con yacimientos de gas natural o con almacenamientos y las conexiones internacionales del sistema gasista español. Las redes de transporte secundario están formadas por gasoductos con presión máxima de diseño entre 16 y 60 bares.

8 Las redes de distribución comprenderán los gasoductos con presión máxima de diseño igual o inferior a 16 bares y aquellos otros que, con independencia de su presión máxima de diseño, tengan por objeto conducir el gas a un único consumidor partiendo de un gasoducto de la Red Básica o de transporte secundario.

 

Em 22/6/2023, a Diretoria Colegiada da ANP aprovou a realização de Consulta e Audiência Públicas de minuta de acordo com a Agência Reguladora de Serviços Públicos do Estado de São Paulo (Arsesp), para estabelecer condições possíveis e necessárias para que o Gasoduto Subida da Serra possa operar de acordo com as legislações federal e estadual.[viii

Estocagem Subterrânea e Acondicionamento de Gás Natural

A Europa tem 91,1 mil milhões de metros cúbicos de gás em armazenamento, com capacidade total de cerca de 113 mil milhões de metros cúbicos.[ix]

A ANP regula o exercício das atividades de estocagem subterrânea e de acondicionamento de gás natural. A empresa interessada na outorga para explorar essas atividades deverá solicitar sua autorização perante a ANP.

A Empresa de Pesquisa Energética – EPE lançou Licitação de Contratação de consultoria técnica especializada para estocagem subterrânea de gás natural e secundariamente a captura, utilização e armazenamento de carbono (CCUS).[x]

Importação de Gás Natural

In Latin America, Brazil had the largest decrease in LNG imports – by 70% (0.6 Bcf/d) – mainly because more electricity was generated by hydropower, reducing demand for natural gas[xi]-fired electricity generation in 2022 compared with 2021.

A ANP passou a dar publicidade às autorizações vigentes de importação de gás natural e exportação de cargas ociosas de GNL. Essas atividades continuam sendo regulamentadas pela Portaria MME nº 232/2012 e Portaria MME nº 67/2010.

Para importação de GNL, via marítima, o país conta com cinco terminais de regaseificação em operação[xii]:

  1. Com capacidade de 20 milhões m³/dia, operado pela Petrobras, o Terminal de Regaseificação de GNL da Baía de Guanabara foi inaugurado em 2009 na cidade do Rio de Janeiro/RJ;
  2. Com capacidade de 21 milhões m³/dia, o terminal de regaseificação de GNL de Gás Natural Açu (GNA) é um empreendimento da joint venture, formada pelas empresas BP, Siemens AG e Prumo Logística. Foi inaugurado em 2021 na cidade de São João da Barra/RJ, como objetivo de atender à demanda de gás natural das usinas térmicas da GNA – UTE GNA I (1.338 MW) e UTE GNA II (1.672 MW);
  3. Com capacidade de 7 milhões m³/dia, o terminal de regaseificação de GNL de Pecém, da Petrobras, foi inaugurado em 2008 na cidade de Pecém/CE;
  4. Com capacidade de 21 milhões m³/dia, de propriedade da Eneva, o Terminal de Regaseificação de GNL de Sergipe foi inaugurado em 2020 na cidade de Barra dos Coqueiros/SE; e
  5. Com capacidade de 20 milhões m³/dia, de propriedade da Petrobras, o Terminal de Regaseificação de GNL da Bahia foi inaugurado em 2014 na cidade São Sebastião do Passé/BA. Em setembro de 2021, o terminal foi arrendado para a norte-americana Excelerate Energy, num contrato de R$ 102 milhões, válido até dezembro de 2023.

Até o fim de 2023, mais três terminais de regaseificação de GNL poderão entrar em operação nos Estados de São Paulo, Santa Catarina e Pará.

São 66 Agentes Autorizados para o Exercício da Atividade de Importação de Gás Natural (Em 4/3/2023).

Comercialização de Gás Natural

São 186 Agentes autorizados pela ANP a exercer atividade de comercialização de gás natural no território nacional (atualizado em 19/5/2023).

Mesmo defasada em relação à Nova Lei do Gás Natural, continuam em vigor a Resolução ANP nº 52, de 29 de setembro de 2011[xiii], pela qual continua regulamentando a comercialização de gás natural dentro da esfera de competência da União, como também o registro de Agentes Comercializadores.

Segundo o Novo Marco Legal, cabe à ANP estabelecer o conteúdo mínimo dos contratos de comercialização, bem como a vedação a cláusulas que prejudiquem a concorrência, implantação de instrumentos de compra e venda padronizados, entre outras atribuições.

Pelo exposto, as mudanças almejadas pelo mercado do gás natural foram insuficientes, em consequência da mudança do cenário político brasileiro.

Assim, o país está no momento de pisar no acelerador do investimento em infraestrutura para o gás natural, visto que em breve pode ser atropelado pelo hidrogênio verde.

 

[i] Dispõe sobre a gestão, a organização, o processo decisório e o controle social das agências reguladoras, altera a Lei nº 9.427, de 26 de dezembro de 1996, a Lei nº 9.472, de 16 de julho de 1997, a Lei nº 9.478, de 6 de agosto de 1997, a Lei nº 9.782, de 26 de janeiro de 1999, a Lei nº 9.961, de 28 de janeiro de 2000, a Lei nº 9.984, de 17 de julho de 2000, a Lei nº 9.986, de 18 de julho de 2000, a Lei nº 10.233, de 5 de junho de 2001, a Medida Provisória nº 2.228-1, de 6 de setembro de 2001, a Lei nº 11.182, de 27 de setembro de 2005, e a Lei nº 10.180, de 6 de fevereiro de 2001 – https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/lei/l13848.htm – Acesso em: 22/6/2023.

[ii] https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/Decreto/D10411.htm – Acesso em: 13/4/2023.

[iii] http://antigo.mme.gov.br/documents/36112/491930/1.+Resolu%C3%A7%C3%A3o_CNPE_16_2019.pdf/c68cfb9a-02b0-4a73-3e4c-26afce1ae9a8#:~:text=Page%201-,CONSELHO%20NACIONAL%20DE%20POL%C3%8DTICA%20ENERG%C3%89TICA%20%2D%20CNPE%20RESOLU%C3%87%C3%83O%20N%C2%BA%2016%2C%20DE,natural%2C%20e%20d%C3%A1%20outras%20provid%C3%AAncias – Acesso em: 13/4/2023.

[iv] https://www.gov.br/anp/pt-br/assuntos/movimentacao-estocagem-e-comercializacao-de-gas-natural/transporte-de-gas-natural/chamadas-publicas#Chamada%208 – Acesso em: 13/4/2023.

[v] https://www.gov.br/anp/pt-br/assuntos/movimentacao-estocagem-e-comercializacao-de-gas-natural/transporte-de-gas-natural/chamadas-publicas#Chamada%209 – Acesso em: 13/4/2023.

[vi] https://www.legisweb.com.br/legislacao/?id=417846

[vii] REGULACIÓN DEL SECTOR DEL GAS NATURAL EN ESPAÑA Y EN LA UE  – chrome-extension://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/http://bases.cortesaragon.es/bases/ndocumen.nsf/0/cd67095768ab863cc12577b5003fd298/%24FILE/12_3_regulacion_del_sector_del_gas_natural_en_espana_y_en_la_ue.pdf  – Acesso em: 13/4/2023.

[viii] https://www.gov.br/anp/pt-br/canais_atendimento/imprensa/noticias-comunicados/gasoduto-subida-da-serra-anp-fara-consulta-publica-sobre-minuta-de-acordo-com-a-arsesp - acesso 22/6/2023.

[ix] https://www.trt.net.tr/portuguese/europa/2022/09/06/ucrania-ira-fornecer-gas-a-ue-1876285 – Acesso em: 13/4/2023.

[x] https://www.epe.gov.br/pt/a-epe/acesso-a-informacao/licitacoes-e-contratos/li-epe-001-2022 – Acesso em: 13/4/2023.

[xi] https://www.eia.gov/naturalgas/weekly/archivenew_ngwu/2023/06_15/ - Acesso em: 22/6/2023.

[xii] https://cenariosgas.editorabrasilenergia.com.br/gas-natural/gas-natural-infraestrutura-de-terminais/  – Acesso em: 21/6/2023.

[xiii] https://atosoficiais.com.br/anp/resolucao-n-52-2011?origin=instituicao&q=52/2011 – Acesso em: 13/4/2023.

 

 

Cid Tomanik é consultor jurídico e regulatório em Energia e utilities do Tomanik Martiniano Advogados e escreve na Brasil Energia a cada três meses

 

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