Opinião

A seca de 2020-21 e o cálculo das garantias físicas

Por Jerson Kelman

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A seca do biênio 2020-21 deflagrou uma discussão no Setor Elétrico sobre a eventual revisão das garantias físicas - GFs das usinas hidroelétricas por efeito do deslocamento do período crítico (pior seca do histórico, quando o “reservatório equivalente” evolui de cheio para vazio), de 1949-56 para 2012-2021. Como a GF de uma usina hidroelétrica define sua participação no MRE e limita a contratação de longo prazo, uma eventual mudança causaria ganhos para uns e perdas para outros. Para discutir tão relevante assunto, convém revisar o conceito de energia firme, que antecedeu ao de garantia física.

Na década de 1970, a chamada “energia firme” de um sistema hidroelétrico e a energia firme de cada usina eram calculadas simulando a operação do sistema com a série histórica de vazões. A energia firme do sistema correspondia à máxima demanda que poderia ser atendida sem falhas e a energia firme de cada usina dependia da sua produção ao longo do período crítico.

Este cálculo tem diversas limitações: (1) não mede corretamente a contribuição dos reservatórios à segurança do sistema; (2) não considera o uso múltiplo dos recursos hídricos; (3) não reconhece que a série histórica é apenas uma realização do processo estocástico e que outras realizações desse processo levariam a resultados diferentes; (4) não considera a influência de outras fontes de geração na confiabilidade do sistema, particularmente as usinas térmicas.

O Energy Report 188 - ER, de 08/2022, da PSR apresenta elegantes soluções matemáticas para esses quatro problemas.

Para o item (1), a solução é considerar que cada usina “tem direito” à vazão natural afluente e que qualquer diferença entre a vazão real e a natural deve ensejar um “acerto contábil” entre a usina e o reservatório que lhe estiver a montante. É como se o reservatório a montante fosse um comerciante que compra água no período chuvoso, quando é pouco valiosa, para “vendê-la” na estiagem, quando é muito valiosa.

Para o item (2), o ER inclui na formulação matemática tanto os usos da água por outros setores quanto as defluências mínimas. Facilita dessa forma o cálculo do custo de cada uma dessas restrições para os consumidores de energia elétrica e, consequentemente, simplifica a alocação econômica de água entre as hidroelétricas e os demais setores usuários da água.

Para o item (3), a solução formulada ainda em meados da década de 1980 foi de substituir o conceito de “energia firme” pelo de “energia garantida a um certo nível de risco”, o que hoje se chama de garantia física. Ou seja, admitir que a “carga crítica” será não-atendida num pequeno percentual dos anos. Para calculá-la é preciso simular o comportamento do sistema não apenas ao longo da série histórica, mas sim para milhares de séries sintéticas produzidas por um modelo estocástico que tenta reproduzir a maneira como a “Natureza joga os dados”.

Em princípio, a GF de cada usina deveria ser calculada de forma análoga ao procedimento de cálculo da energia firme, isto é, contabilizando quanto cada usina gera ao longo dos diversos “períodos secos” da simulação com séries sintéticas. Porém, como o diabo mora nos detalhes, a implementação desse procedimento esbarrou numa dificuldade: a simulação com séries estocásticas era feita no passado por modelos que agregavam as hidroelétricas, e, portanto, não calculavam sua produção individualizada. O resultado era a GF do bloco hidráulico e não de cada usina.

A desagregação da GF do bloco hidráulico nas GFs das usinas foi arbitrada como proporcional à energia gerada por cada usina ao longo do período crítico da série histórica. Na realidade, uma “gambiarra” metodológica que misturou conceitos determinísticos e probabilísticos. Claro que seria mais consistente desagregar com base no desempenho de cada usina ao longo de muitos períodos secos e não apenas de um único período crítico associada à série histórica.

O ER mostra que atualmente o cálculo correto poderia ser feito com os modelos oficiais do Setor. Porém, é preciso cautela ao aplicar revisões metodológicas que possam causar impacto econômico a agentes do Setor que tomaram decisões de boa fé no passado baseadas nas regras então vigentes. Por isso, e porque não faz sentido substituir uma arbitrariedade por outra, as GFs não devem ser recalculadas por conta da mudança do período crítico. O melhor a fazer é aplicar a metodologia correta no cálculo de GFs das futuras usinas.

Quanto ao item (4), o ER apresenta solução muito interessante, também usando modelos oficiais do Setor. Mas não tenho espaço para explicar. Melhor o prezado leitor consultar diretamente o ER.

 

 

 

 

Jerson Kelman é engenheiro civil e M.Sc. pela UFRJ e Ph.D. pela Colorado State University. Participa dos conselhos de administração da Eneva (como presidente), Evoltz, Iguá e Orizon. É professor aposentado da Coppe-UFRJ. Foi o principal dirigente da ABRH, ANA, Aneel, Light, Enersul e Sabesp.

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