Opinião

A regulação do Mercado de Gás no Brasil e a relevância do Relivre

A regulação do mercado livre nos estados, por mais moderna que seja, será pouco ou nada eficaz se não houver uma relativa diversidade de agentes e uma efetiva concorrência do lado da oferta de gás, bem como estímulos à expansão das infraestruturas gasistas

Por Bruno Armbrust

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A efetiva abertura do mercado de gás no Brasil ainda está longe das “boas práticas internacionais”, uma das diretrizes da Resolução 3/2022 do Conselho Nacional de Política Energética - CNPE. Apesar das evoluções já percebidas, ainda existem lacunas e questões importantes na regulação que deverão ser equacionadas num processo gradual e contínuo.

Cabe remarcar que o objetivo principal do processo de liberalização do mercado de gás é disponibilizar ao usuário final um fornecimento seguro, a preços competitivos, ampliando a possibilidade de os consumidores elegerem seu fornecedor, com reais ganhos de eficiência, conectando a oferta ao consumidor final. É fundamental também assegurar uma justa remuneração aos agentes, para incentivar os investimentos na expansão das infraestruturas gasistas.

Nesse sentido, estabelecer, de fato, um regime de concorrência do lado da oferta e eliminar as barreiras volumétricas para um consumidor poder eleger seu comercializador são dois fatores fundamentais para que o mercado livre de gás inicie uma trajetória rumo às boas práticas internacionais.

Outro aspecto importante descrito nas diretrizes para o desenho do novo mercado de gás, previsto na CNPE nº 3/2022, é a necessidade da promoção de uma maior harmonização entre as regulações. A iniciativa recente patrocinada por três associações criou o Relivre, uma espécie de ranking com o objetivo de aferir o grau de regulação em cada estado. A metodologia do Relivre considera, para diferentes aspectos regulatórios, pesos e medidas de acordo com a visão das entidades patrocinadoras, buscando classificar o grau de abertura do mercado livre em cada estado.

A mais recente atualização do ranking dá um grande destaque ao fato de o estado de Alagoas ter passado para a 1ª colocação, ultrapassando o estado de São Paulo. Sem nenhum demérito à iniciativa de se promover um ranking, a notícia de que Alagoas passou São Paulo não tem maior relevância no contexto global da abertura do mercado de gás.

Dentre os diferentes critérios fixados pelo Relivre para estabelecer o grau de abertura do mercado em cada estado, se encontram itens como a classificação de gasodutos e a taxa de fiscalização, que no atual estágio da abertura do mercado de gás no país não tem um peso importante. Questões como a redução gradual das barreiras volumétricas, facilidade de migração de clientes livres ao mercado cativo, separação contábil dos gastos de distribuição e comercialização para se evitar a prática de subsídios cruzados, e transparência nas agências reguladoras são mais relevantes para se avaliar o grau de avanço da regulação nos estados e deveriam ter um peso maior.

A regulação do mercado livre nos estados, por mais moderna que seja, será pouco ou nada eficaz se não houver uma relativa diversidade de agentes e uma efetiva concorrência do lado da oferta de gás, bem como estímulos à expansão das infraestruturas gasistas.

A título de exemplo, no Rio de Janeiro os contratos de concessão permitem desde 2007 aos consumidores industriais, com consumo acima de 100 mil m³/dia, adquirirem gás no mercado livre. Passados mais de 15 anos nada aconteceu de concreto demonstrando que, sem um ambiente de diversidade de ofertantes e concorrência, qualquer regulação nos estados será pouco efetiva, podendo beneficiar, quando muito, poucas e grandes indústrias.

O Relivre, moldado na visão dos seus patrocinadores, representa apenas uma parcela de agentes do mercado, sem considerar que o mercado de gás é formado por muitos outros consumidores, que totalizam mais de 4 milhões. Assim, da forma que está concebido, acaba sendo um elemento perturbador e pouco construtivo no atual momento.

O caso do mercado de gás natural veicular é um exemplo. Esse segmento no Rio de Janeiro equivale, em volume, ao mercado industrial, e tem vendas médias por ponto de consumo de cerca de 5 mil m³/dia. Caso haja barreira volumétrica no estado para a migração ao mercado livre superior a 5 mil m³/dia, cerca de 60% do volume de gás convencional comercializado na área de concessão da CEG no estado não poderia migrar para o mercado livre, impedindo esse importante segmento do mercado, onde o custo do gás tem um peso maior na tarifa final que o industrial, de eleger seu comercializador.

Não resta dúvida de que é preciso avançar na regulação nos estados, buscando uma certa harmonização, e medir os avanços tem sua importância, mas nesse momento seria mais construtivo a realização de um acompanhamento sistemático do grau de abertura do mercado de gás no Brasil frente a países que já alcançaram um elevado grau de abertura do mercado de gás, bem como se avaliar o alinhamento da abertura do mercado às diretrizes indicadas na Resolução CNPE nº3/2022.

A Abrace vem também utilizando o índice Herfindahl-Hirschman Index - HHI para medir o grau de concentração de mercado, o que faz todo o sentido e é muito utilizado. Acompanhar a evolução do HHI no país nesse momento é, sem dúvida, muito mais relevante que a iniciativa do Relivre, pois esse é um índice utilizado em vários países.

No entanto, o HHI não é a única referência para verificar se um mercado é saudável. Existem outros fatores que deveriam ser considerados além do grau de abertura do mercado, tais como: o nível de concorrência, a transparência, e o nível de preços e de liquidez do mercado.

Na União Europeia, além do HHI, se avalia o nível de liquidez do mercado, com base em parâmetros do Gas Target Model – GTM, definidos pelo regulador europeu - ACER, além de outros indicadores como taxa de rotação, volume de gás nos pontos de entrada e saída, diversificação de origens de gás no sistema, índice de oferta residual, que servem para medir a saúde do mercado de gás.

A ACER enfatiza que um bom mercado requer um mercado spot líquido, que proporcione tanto aos comercializadores como aos consumidores maneiras efetivas de gerenciar seus balanços e o risco de mercado, reduzindo barreiras de entrada de novos competidores.

Portanto, é preciso muita cautela quando se lança algum tipo de ferramenta de avaliação do grau de abertura do mercado de gás, principalmente nessa etapa inicial.

Buscar uma certa harmonização e aprimorar e modernizar as diretrizes básicas da regulação para todos os futuros consumidores livres, protegendo também os cativos, será fundamental para uma evolução ordenada da regulação e da abertura do mercado de gás nos estados.

A adoção de novas medidas para fomentar o mercado livre de gás, dentro dos marcos regulatórios estaduais, como a eliminação das barreiras volumétricas para a migração ao mercado livre, facilidade de migração, eliminação de subsídios cruzados, neutralidade do impacto de contas gráficas para o mercado cativo na migração de clientes ao mercado livre, estabelecimento de garantias, dentre outras, são importantes e devem ser observados considerando as peculiaridades e perfil do mercado de cada estado.

Conceder a liberdade e a facilidade dos consumidores migrarem para o mercado livre é fundamental, mas ainda mais importante é criar condições para o aumento da oferta de gás e da concorrência. Na região Nordeste do país, a maior diversificação de agentes já gerou um aumento da concorrência com impactos positivos para o mercado, mas nas regiões Sul e Sudeste ainda há o predomínio da Petrobras. Somente o aumento contínuo da concorrência fará com que os comercializadores busquem ofertas mais competitivas pela disputa do consumidor final.

A regulação precisa avançar de forma gradual, efetiva, ordenada e coordenada, entre os diferentes elos da indústria do gás. Para isso ser alcançado se faz necessário a ampla participação da sociedade e dos agentes do setor e a máxima transparência dos reguladores.

 

 

Bruno Armbrust é sócio diretor fundador da ARM Consultoria, ex-presidente do grupo Naturgy na Itália de 2004 a 2007 e no Brasil de 2007 a 2019. Escreve na Brasil Energia a cada dois meses.

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