Opinião

O regulador não rasga contratos *

As lições extraídas do racionamento de 2001 mostram que o melhor caminho para reduzir as contas de luz não é por decreto, mas pela retirada do entulho legislativo que eleva a conta anual de subsídios a R$32 bilhões

Por Jerson Kelman

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No final de 2000 e início de 2001, a atenção do Governo estava focada em medidas que pudessem evitar ou mitigar o iminente racionamento. Na pressa, firmaram-se contratos vantajosos para empreendedores que conseguissem instalar novas termoelétricas em prazos exíguos. Sabia-se que esses investimentos resultariam em tarifas mais elevadas, mas raciocinava-se que energia cara é melhor do que nenhuma energia. Como se vê, a situação é muito parecida com a do final de 2021. Vale a pena revisitar o episódio de mais de 20 anos atrás para extrair lições para a presente situação.

Passado o sufoco do racionamento de 2001, depois que os reservatórios das usinas hidroelétricas voltaram a se encher, o que circunstancialmente dispensava o uso da energia produzida pelas termoelétricas, muitos bateram às portas da Justiça para que os contratos fossem anulados. Aconteceu assim com a CELPE – distribuidora de Pernambuco.

Como o tema é complexo, alguns juízes concederam liminares revogando cálculos tarifários feitos pela ANEEL, partindo do pressuposto de que os contratos foram lesivos ao interesse do consumidor. Não levaram em consideração que a situação seria diametralmente oposta se, depois de 2001, tivesse chovido pouco e os reservatórios permanecessem vazios.

O expressivo aumento tarifário da CELPE despertou o interesse de diversos parlamentares. Alguns verdadeiramente querendo entender o que havia ocorrido e outros querendo tirar proveito demagógico do complexo assunto. Exatamente como ocorre agora.

A Agência enfrentou os mais diversos questionamentos por cumprir a lei e respeitar os contratos, inclusive uma CPI na Assembleia Legislativa. Defendíamos a posição de que o que poderia ser favorável aos consumidores pernambucanos no curto prazo – isto é, “rasgar contratos” – sinalizaria uma ausência de regras e uma instabilidade regulatória. Ou seja, um mau resultado no longo prazo.

Evidentemente, cabe ao Poder Judiciário controlar a legalidade dos atos administrativos praticados pelas agências reguladoras. No entanto, quando se trata de matéria tarifária, quase sempre se questionam opções técnicas tomadas pela ANEEL no exercício de suas competências legais.

A intervenção judicial - ou, no caso presente, a intervenção legislativa - sempre busca a redução de tarifas. Mas, pode alcançar, em médio prazo, o resultado exatamente contrário. A incerteza sobre o respeito aos contratos aumenta o risco regulatório, o que afugenta os investidores mais prudentes, criando as condições para que os investidores mais ousados demandem maior remuneração do capital. Ao final, e mais uma vez, são os consumidores que pagam a conta, por meio de tarifas mais elevadas.

Felizmente o imbróglio judiciário sobre a CELPE teve um desfecho sensato: em 2008 a 4ª Turma do TRF, em sintonia com a posição do STJ, reconheceu a competência da ANEEL para exercer a função para a qual as agências foram criadas: regular, fiscalizar e definir o valor das tarifas.  No voto do desembargador federal e relator, Marcelo Navarro, ficou claro que a fixação das tarifas decorre de uma política setorial, e que a modicidade tarifária não significa necessariamente tarifas baixas. Significa, isto sim, a menor tarifa possível para remunerar os investimentos, possibilitar a expansão do sistema e a prestação de um serviço adequado. O relator registrou ainda a necessidade de manutenção do equilíbrio econômico-financeiro, destacando a sua previsão constitucional e legal, bem como a competência da ANEEL – e não do Judiciário – para fixação das tarifas.

Escrevo esse artigo quando a Câmara dos Deputados está prestes a deliberar sobre decreto legislativo de motivação obviamente eleitoral que pretende empurrar para o ano que vem as salgadas revisões tarifárias do corrente ano. Como bem disse o jornalista Daniel Rittner (Valor 04/05/2022), "a mesma turma que aproveita a tramitação de medidas provisórias para enfiar mais subsídios nas contas de luz agora se vira para dar alguma resposta a eleitores insatisfeitos".

Oxalá os parlamentares tenham um acesso coletivo de bom senso e decidam reduzir as contas de luz pelo caminho correto: removendo o entulho legislativo que eleva a conta anual de subsídios a R$32 bilhões.  Porém, se persistirem com o demagógico decreto legislativo, certamente o assunto será judicializado. E a Justiça já mostrou sensatez e competência ao decidir sobre o assunto.

*Esse artigo aproveita partes do capítulo 17 do livro Desafios do Regulador, Editora Synergia, 2009.

 

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