Opinião

Todo mundo quer ir para o céu, mas ninguém quer morrer

Bancos, investidores, financiadores, consumidores, todos querem o carimbo verde e o impacto reputacional positivo desse compromisso, mas pouquíssimos estão realmente dispostos a tomar o risco tecnológico, risco de execução, reduzir taxa de financiamento ou pelo menos pagar o preço dos projetos ou produtos que promovem descarbonização

Por Paula Kovarsky

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Essa frase não é minha e ouvi de um grande amigo e ex-chefe muito querido num tempo em que transição energética ou descarbonização não passavam de conversa acadêmica ou assunto de “abraça-arvore”. A conversa da época era o desenvolvimento do mercado de gás natural no Brasil, desafios de (falta de) infraestrutura e as primeiras tentativas de trazer GNL para o país. A participação da Petrobras na infraestrutura de gasodutos e nas distribuidoras de gás natural diminuiu e o mercado cativo de gás se desenvolveu. Já a questão do papel efetivo das termelétricas ou o mercado livre de gás seguem sem avanços expressivos, correndo o risco de perder o barco da transição energética.

A frase, no entanto, segue mais atual do que nunca e tem me servido de argumento com frequência muito maior do que eu gostaria em discussões relacionadas ao custo da descarbonização. Traduzindo objetivamente: bancos, investidores, financiadores, consumidores, todos querem o carimbo verde e o impacto reputacional positivo desse compromisso, mas pouquíssimos estão realmente dispostos a tomar o risco tecnológico, risco de execução, reduzir taxa de financiamento ou pelo menos pagar o preço dos projetos ou produtos que promovem descarbonização.

Pausa de consistência: Projetos sustentáveis e com objetivo de descarbonização precisam se pagar. Desde que comecei a me envolver com este tema repito abertamente que não existe projeto verdadeiramente sustentável no longo prazo se não houver sustentabilidade econômica. Mais ainda, insisto que o foco de desenvolvimento de produtos renováveis deve ser sempre “padrão exportação”, uma vez que o reconhecimento financeiro do atributo sustentável é múltiplas vezes maior nos EUA, Europa ou Japão do que aqui no Brasil.

Isto posto, o que dizer por exemplo da agenda de financiamento verde da grande maioria dos bancos comerciais, que tanto valorizam o marketing da ambição Net Zero e que suportam a causa verde com financiamentos, se no fim as taxas oferecidas, calibradas pelos mesmos times de risco de crédito, são praticamente as mesmas dadas às empresas fosseis? Qual o sentido de um fundo soberano de um país grande produtor de petróleo querer retornos altíssimos, em moeda forte, para investir em projetos de energia renovável no Brasil mesmo quando seus países precisam tanto de alternativas de compensação para suas emissões?

Outra discussão boa é o argumento de que SAF (combustível sustentável de aviação) é muito caro. Muitas empresas aéreas saíram na frente com compromissos muitas vezes mais ambiciosos do que os mandatos a que estão submetidas, mesmo reconhecendo que dificilmente haverá uma solução para viagens de longa distância baseada em eletrificação ou mesmo uso de hidrogênio. Para replicar a quantidade de energia contida em um quilo de querosene de aviação seria necessária uma bateria com 20x o peso, inviabilizando qualquer tentativa de decolagem. Sendo assim, existe razoável consenso de que os biocombustíveis muito provavelmente serão a única alternativa viável nas próximas décadas. Vale lembrar que esta é uma indústria que serve uma parcela da sociedade relativamente capaz de pagar a conta, além de ter acesso a informação suficiente para entender a importância do compromisso, fora a parcela movimentada pelas empresas em viagens corporativas. Se a alternativa de eletrificação ou uso de hidrogênio exigiria investimentos gigantescos em tecnologia e depois na troca das aeronaves, dizer que SAF é caro parece no mínimo uma simplificação.

No caso brasileiro é mais difícil de entender. Como explicar que o consumidor brasileiro, mesmo em momentos em que a paridade de preço do etanol em bases energéticas está abaixo da gasolina, o mix de uso não passa de 30%, sendo que a frota hoje é predominantemente flex. Ou seja, mesmo com vantagem econômica os consumidores em sua maioria ainda dão preferência ao fóssil, por falta de conhecimento ou inércia. O que dizer então dos eventos recentes relacionados à nossa principal política pública para incentivar o consumo de biocombustíveis em detrimento dos combustíveis fósseis – o RenovaBio. Uma parcela das distribuidoras, parte obrigada do programa, fez questionamentos oportunísticos recentes às metas estabelecidas e, para piorar, o número de empresas inadimplentes com suas metas de descarbonização do programa vem saltando ano-a-ano tendo atingido 10% do total. Dessas empresas, 17 são reincidentes no descumprimento e 43 não compraram um único Crédito de Descarbonização (CBIO). Se essa postura não for punida severamente pelas autoridades competentes o problema se intensificará, uma vez que mais empresas serão incentivadas a não cumprir suas metas limitando muito a eficácia da política.

A consciência global sobre a urgência de combater as mudanças climáticas e o papel da transição energética e do uso de combustíveis mais limpos evoluiu de forma impressionante nos últimos anos. Mas na hora de botar a mão no próprio bolso ou incorporar de verdade a sustentabilidade no conceito de risk-adjusted returns, nem todos estão realmente dispostos a contribuir. Ou seja, todo mundo quer ir para o céu, mas ninguém quer morrer...

 

 

Paula Kovarsky, engenheira mecânica e de produção, com MBA em finanças corporativas, tem mais de 20 anos de experiência no setor de energia e é VP na Raízen. Escreve na Brasil Energia a cada três meses.

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