Opinião

Cbios - Em time que está ganhando...

Time que está ganhando tem que treinar duro todos os dias, buscando melhorar sempre. Mas tentar mudar novamente a regra no meio do jogo, como foi feito no passado com o RenovaBio, é colocar em risco um programa reconhecido internacionalmente por incentivo a descarbonização, com a vantagem de diluir o custo de forma muito eficiente entre entes privados do mercado e sem onerar as contas públicas

Por Paula Kovarsky

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Em tempos de Chat GPT, dizer que em time que está ganhando não se mexe parece um contrassenso. Quantas histórias de empresas que, iludidas por seu sucesso presente, não enxergaram mudanças gigantescas chegando e foram atropeladas por startups que até então pareciam criancinhas inofensivas? Nas últimas duas semanas essa conversa me veio à cabeça algumas vezes enquanto tentava entender o posicionamento recente de distribuidoras de combustíveis em relação ao RenovaBio, a Política Nacional de Biocombustíveis.

De forma simples, o RenovaBio é um sistema conhecido internacionalmente como “cap and trade”, onde o “cap” é uma meta de descarbonização ou compensação por emissões definida pelos governos e “trade” um mecanismo de mercado onde as partes envolvidas negociam livremente entre si Cbios (créditos de carbono) de modo que o estímulo à produção de combustíveis renováveis seja financiado pelo consumo de combustíveis fósseis. O principal instrumento do RenovaBio é, portanto, o estabelecimento de metas nacionais anuais de descarbonização para as distribuidoras de combustíveis, de forma a incentivar o aumento da produção e da participação de biocombustíveis na matriz energética de transportes do país, reduzindo assim a emissão de gases causadores do efeito estufa.

Em comunicado recente, essas distribuidoras demonstraram sua preocupação com a escalada “desenfreada e injustificada” do preço dos Cbios, que em 03 de julho de 2023 atingiu o valor de R$ 150,00 por certificado e consequentemente um suposto impacto de R$ 0,12 por litro na formação dos preços de derivados ao consumidor. O comunicado cita ainda que trabalhos técnicos teriam sido publicados apontando os efeitos negativos do programa RenovaBio, que o tornam assimétrico e ineficaz, além de gerar “evidente ineficiência concorrencial, ônus ao mercado e aos consumidores, com impacto direto na formação dos preços finais de bomba e nos índices inflacionários...”

Em julho de 2022, logo depois dos Cbios baterem R$ 200,00, o governo anterior decidiu postergar a data estabelecida para cumprimento das metas daquele ano em 9 meses, de dezembro de 2022 para setembro de 2023. Além de dar ao mercado a indicação equivocada de que a meta não era para valer, descaracterizando o primeiro pilar do programa que é justamente a existência de uma meta, ao aumentar o prazo em 9 meses o governo criou um desequilíbrio artificial de oferta e demanda de Cbios, afetando, portanto, o segundo pilar do programa, onde os preços do Cbio são negociados e se equilibram a mercado.

Já o governo atual, mais comprometido com os compromissos de descarbonização assumidos, decidiu trazer o programa, gradualmente, para sua proposta original de metas anuais cumpridas dentro do próprio ano. Para evitar um outro choque na demanda por Cbios, foram mantidas as datas de set/23 e mar/24 para as metas de 2022 e 2023, respectivamente, e o ajuste foi feito apenas a partir da meta de 2024, que deverá ser cumprida até dezembro daquele ano.

Interessante ressaltar que no período entre jan/22 a mar/23 foram vendidos 36,7 milhões de Cbios, praticamente o mesmo valor da meta prevista para o ano de 2022. No período de jan/22 a jun/23 (último dado completo disponível) foram vendidos de 47 milhões de CBIOs, contra uma meta de 46 milhões, considerando a meta de 2022 integralmente, mais 3 meses de cumprimento da meta de 2023 a partir de abril. Em outras palavras, havia oferta mais do que suficiente de Cbios se todas as distribuidoras, de forma prudente, estivessem comprando os títulos na proporção de 1/12 da meta anual a cada mês.

Se essas distribuidoras comprassem seus Cbios, de forma cadenciada, para o atendimento de suas metas de 2022 até março de 2023 (ou seja, entre jan/2022 e mar/2023 e assim 6 meses antes da data final) seu custo de aquisição seria de R$ 99,00 por Cbio, com impacto ao consumidor de R$ 0,03 (três centavos) por litro de combustível vendido durante estes 15 meses.

A reclamação sobre os preços atuais de Cbios sugere que, por razões que não me cabe avaliar, ou simplesmente partindo da premissa que o novo governo seguiria o mesmo padrão de ajustar metas, parte das distribuidoras foi adiando as compras de Cbios, acumulando um saldo de demanda pelos créditos, possivelmente na expectativa de que, caso os preços do Cbio voltassem a subir, o prazo de cumprimento da meta seria novamente postergado. Difícil imaginar outra razão para uma crítica tão forte de agentes privados que, em teoria, deveriam defender um mecanismo de mercado estabelecido.

Sobre a parte do posicionamento dessas distribuidoras, que calculava um impacto de R$ 0,12 por litro de combustível ao consumidor por considerar apenas o volume de gasolina vendido e desconsiderando o diesel, parte integrante do programa, prefiro atribuir a uma distração ou erro de planilha. Já aceitar que, por uma razão circunstancial e em certa medida oportunista, estamos colocando em risco um programa reconhecido internacionalmente por incentivo a descarbonização, com a vantagem de diluir o custo de forma muito eficiente entre entes privados do mercado e sem onerar as contas públicas, me parece absolutamente inaceitável.

O RenovaBio pode evoluir? Certamente. Um dos principais questionamentos ao nosso cap and trade tropical é que ele não gera a chamada adicionalidade de forma objetiva. Ao melhorar a rentabilidade do produtor de biocombustíveis, o país mantém o incentivo à produção, criando inclusive maior previsibilidade de preços e menor dependência dos preços de gasolina. Mas o programa poderia, por exemplo, atrelar parte do benefício à investimentos em novas plantas, aumentando a disponibilidade de biocombustíveis para substituição das alternativas fósseis. Um outro tema interessante é a certificação dos Cbios a partir dos cálculos de emissão atrelados à eficiência agrícola e operacional de cada usina. Um esforço de equiparação das premissas às calculadoras usadas internacionalmente, não necessariamente com o objetivo de mudar as nossas contas e sim, de educar o mercado sobre a qualidade dos créditos brasileiros para que eles sejam reconhecidos em mercados de carbono fora do Brasil, poderia gerar enorme valor.

Time que está ganhando tem que continuar treinando duro todos os dias, buscando melhorar sempre. Mas tirar o cestinha do jogo no meio de uma partida crucial, ou tentar mudar a regra no meio do jogo, me parece coisa de técnico amador.

 

Paula Kovarsky, engenheira mecânica e de produção, com MBA em finanças corporativas, tem mais de 20 anos de experiência no setor de energia e é VP na Raízen. Escreve na Brasil Energia a cada três meses.

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