Opinião

Tempo de reformas amplas e urgentes

As reformas fiscal e tributária são prioritárias para o governo por serem capazes de alavancar o crescimento, ausente depois de meados da década passada. É preciso chegar a um pacto entre as classes sociais, fazer um novo contrato social mais apropriado aos desafios do século XXI. Não se trata apenas da divisão do excedente econômico, mas também do uso dos recursos naturais, da proteção ao meio ambiente e do fim da pobreza

Por Luís Eduardo Duque Dutra

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Em 2020 e 2021, os gastos com a pandemia e, em 2022, a alta dos combustíveis ocasionaram uma enorme pressão fiscal. Houve também um número sem precedente de Emendas Constitucionais no ano passado. Os elevados preços dos combustíveis motivaram o “estado de emergência”, reconhecido pela Emenda Constitucional no 123 e deram margem às medidas que visavam diminuir o seu impacto em ano eleitoral.

Desde então, a gasolina e o óleo diesel estão no centro da discussão sobre o déficit fiscal e a ordem – ou desordem – tributária. Não sem razão: quase um décimo das receitas correntes do orçamento tem origem no petróleo e, para tanto, metade do excedente setorial é apropriado pelo Estado. A apropriação estatal se soma à segurança do abastecimento e ao valor inestimável do acesso pelos mais pobres à energia.

A importância fiscal e o impacto social dos combustíveis não demoveram os dois governos anteriores de apequenar o Estado no setor.  Em 2014, a última unidade de refino foi concluída (correspondeu à metade do projeto original da Rnest). Em 2016, com Pedro Parente na Petrobras, foi cancelado o fim da obra, assim como a construção do Comperj, cujo projeto original concebia um complexo com refino e petroquímica associados.

Em 2019, no governo Bolsonaro, o Termo de Cessação de Conduta junto ao CADE deu roupagem jurídico-administrativo ao programa de alienação de ativos. O compromisso de vender metade do refino foi iniciado pela antiga Rlam, em 2019, a segunda maior do país. Em 2021, foi a vez da Refinaria de Manaus. Dois monopólios regionais foram criados, basta ver os preços no Amazonas e na Bahia.

A BR Distribuidora, por sua vez, a maior empresa do segmento de combustíveis, teve 70% de seu controle vendido em 2019 e, em 2021, a sua integralidade. Em 2020, a engarrafadora e distribuidora de GLP foi vendida. A petroleira avançou assim na estratégia de se concentrar na exploração e produção de petróleo em águas ultraprofundas.

No gás natural, uma indústria em rede foi desmembrada. O programa “Gás para Crescer”, em 2016, fincou a bandeira do novo governo. Em 2017, ocorreu a venda de 90% da NTS, Nova Transportadora do Sudeste. No ano seguinte, tomou corpo o Decreto no 9.616 que regulamentou o transporte, o processamento e a liquefação por parte de capitais privados. Em 2019, o “Novo Mercado do Gás” acelerou o movimento: a TAG, Transportadora Associada de Gás Natural, foi alienada, assim como a Gaspetro, veículo de participação nas diversas distribuidoras estaduais.

Em 2021, foi a vez do Polo Alagoas, que incluiu uma UPGN, campos e gasodutos de escoamento. Em 2022, o mesmo aconteceu com o Polo Potiguar e, além dos campos e da refinaria Clara Camarão, foi incluído um terminal portuário e a UPGN Guamaré. O Congresso Nacional, em 2021, aprovou a Lei no 14.134 que dispõe sobre a “abertura” do mercado; de fato, coroa sua desintegração.

Também organizado em rede, não foi diferente no setor elétrico. A privatização da Eletrobras se viabilizou após duas tentativas fracassadas de Projetos de Lei (em 2018 e 2019). Em 2021, o governo assinou a MP no 1.031, que se converteu na Lei no 14.182 em julho daquele ano. Em 2022, seguiram-se os Decretos no 11.042 e 11.091, que detalharam os procedimentos para a “desestatização da empresa Centrais Elétricas Brasileiras” (um terço da capacidade de geração e metade da transmissão disponível no país). As mudanças legais e infralegais não se atêm só a isso, determinam a construção de termelétricas onde não existem gasodutos e procuram tornar a operação de venda irreversível.

O que aqui interessa são os tributos e encargos que incidem no preço final e não somente dos combustíveis automotivos. Tanto o gás natural, quanto a eletricidade, também são fortemente taxados. O consumo é pouco sensível às alterações de preço e o comprador está capturado pelo vendedor, por não ter como substituir o energético. O fisco se aproveita e faz das distribuidoras de eletricidade e gás natural, as responsáveis por recolher as obrigações que recaem no preço final (o custo de arrecadação não podia ser mais baixo).

Resultado da oportunidade com a comodidade: em maio de 2022, na região Sudeste, para residências e pequenas indústrias, no preço do gás natural, mais de um quinto eram encargos e tributos. Em 2021, na média, esses recolhimentos alcançavam quase metade do preço da eletricidade - 44% - sendo que 31% eram tributos e 13%, encargos “setoriais”.

O peso da arrecadação fiscal, extrafiscal e parafiscal não é tudo, o impacto do preço na inflação e no custo de vida das famílias é evidente e, como visto, o efeito distributivo é extremamente negativo. Confrontado à pressão fiscal agravada pela desordem tributária, o Estado se vê aleijado dos meios para intervir. Assim, nos dezoito anos antes da guerra da Ucrânia, corrigido pela inflação, o preço da gasolina subiu 22%, o GLP registrou aumento de 29% e o óleo diesel nada menos que 48%.

Enquanto isso, o Brasil deixou de ser importador para exportar mais de um milhão de barris de óleo bruto por dia. Em outros setores foi ainda mais penoso: os preços da eletricidade e do gás natural estavam entre os mais altos do mundo antes do choque e da guerra da Ucrânia. E, apesar da matriz energética renovável, nem o desempenho ambiental é meritório. Em volume, o Brasil é o sétimo maior emissor de gases de efeito estufa e, per capita, é o quarto; só estando atrás dos EUA, da Rússia e da China.

No setor energético, a tributação reproduz vícios conhecidos e que a faz única: a cobrança por dentro do ICMS, a disparidade das alíquotas entre os estados, a incidência ad valorem das imposições, a dificuldade na apuração e restituição dos créditos do IPI e do ICMS, a bitributação das contribuições na mistura de biocombustíveis com derivados de petróleo... Em escopo mais amplo, também só aqui, o imposto sobre o serviço não incide sobre o aluguel, o lucro dividido com o acionista e o juro sobre o capital próprio são isentos de qualquer taxação e o imposto sobre a renda, sem correção depois de 2015, não é nem um pouco progressivo.

Ao mesmo tempo, vale lembrar que a Constituição se ocupa dos tributos em seus pormenores, como raramente se vê em outros países, e não faltaram emendas e remendos ao estrangulamento fiscal e caos tributário atual. Sem acomodar minimamente as expectativas quanto as regras, não se realiza a segurança jurídica tão reclamada pelo capitalista. Para aqueles envolvidos com a divisão extraordinária do valor agregado e dos tributos cobrados nos preços da energia e dos combustíveis, as consequências são a falta de eficiência arrecadatória para o Estado e a carestia da conformidade para o capital, sem qualquer consideração ambiental ou sobre as mudanças climáticas. Ao final, quem paga o sobrepreço é o consumidor, mas, até quem não compra também perde, devido aos elevados custos sociais e, esses, nem no preço estão.

Foi dito, num país desigual, o impacto distributivo é fortemente negativo. E a breve crítica, aqui feita, permite avançar uma certeza: faltam integração e coordenação entre as políticas públicas no que toca a proteção ambiental, o clima, os tributos e a energia. A ausência de acordo quanto à divisão do excedente econômico é uma lacuna do contrato social que reflete a permanência de conflitos insolúveis entre interesses diversos, quando não antagônicos. O que pode explicar as repetidas e fracassadas tentativas de reforma tributária e o imbróglio fiscal a que se chegou. Nos próximos meses, vislumbra-se mais uma oportunidade para definirmos o projeto para o Brasil no século XXI. Do que se viu, deduz-se que as duas reformas devem estar sincronizadas, abarcarem o social e o ambiental, além de terem cunho fiscal e extrafiscal, para servirem de ponto-de-partida.

Luís Eduardo Duque Dutra é doutor em Ciências Econômicas pelas Universidade de Paris Nord e professor Adjunto da Escola de Química da Universidade Federal do Rio de Janeiro. É autor de Capital Petróleo: a saga da indústria entre guerras, ciclos e crises publicado pela editora Garamond.

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