Opinião

Renovação das concessões e o que está ficando de lado

País perde a oportunidade de discutir o futuro do setor elétrico e o papel das distribuidoras diante das novas configurações do mercado

Por Alexandre Ribeiro Leite

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Coautores: Mário Saadi* e Yasmin Yazigi de Conto*

O Brasil pode estar perdendo grande oportunidade de rediscutir o papel das distribuidoras de energia na esteira das renovações das concessões que vencem entre 2025 e 2031. O cenário que se tinha na década de 1990, quando os contratos atuais foram firmados, mudou drasticamente em razão do avanço tecnológico, da abertura do mercado livre de energia e da popularização de novos modelos de negócio no conceito de “energy as a service”, que englobam diversos tipos de produtos, inclusive a tradicional “venda” de energia.

Nos últimos anos, especialmente a partir da abertura gradual de mercado, as distribuidoras vêm perdendo seu papel antes central de vendedoras de energia. O setor de distribuição passou a caminhar para sua função primordial como utilities (infraestruturas essenciais para a prestação determinados serviços de utilidade pública), transformando as concessionárias em market place, por meio do qual diversos outros players oferecem serviços ou produtos para o consumidor final. 

No entanto, ainda existem diversas lacunas que precisam ser endereçadas na discussão sobre a renovação dos contratos de concessão. É o caso, por exemplo, de aspectos regulatórios e de políticas públicas, além de questões econômicas que conversam entre si e que afetam a qualidade e a eficiência do serviço. 

Nos casos regulatórios e de políticas públicas, os principais aspectos são:

  1. Contratos legados, nos quais há alocação dos custos dos contratos de compra e venda decorrentes de leilões passados em contexto de sobrecontratação das distribuidoras.

  1. Definição do supridor de última instância do setor, ou seja, dos mecanismos de segurança energética para consumidores livres que eventualmente venham a ter seu fornecimento de energia com geradores/comercializadores interrompido. Em outros países, esse papel tem sido atribuído às distribuidoras. Porém, em ambiente de livre contratação, é necessária nova regulação, com condições mais claras da extensão e do preço dessa função. O supridor de última instância será forçado a praticar o preço oferecido por terceiros, que podem, inclusive, ser extremamente baixos, como estratégia para ganhar mercado?

  1. Pulverização do setor em diversos players, que dificulta a gestão do setor elétrico, em razão do fim, ou redução da relevância, do papel de caixas do setor exercido pelas distribuidoras. Isso porque elas funcionavam como centralizadoras dos repasses setoriais, papel que é mitigado em função de o setor, atualmente, possuir diversos atores, altamente pulverizados.

Já sob o ponto de vista financeiro e econômico, os principais pontos de atenção são: 

  1. Perda de receitas da venda de energia e, em alguns casos, até mesmo do uso das utilities.

  1. Aumento da Inadimplência, em razão do aumento das tarifas do mercado cativo, que representa um grave problema de receita das distribuidoras. Além disso, clientes inadimplentes costumam ter dificuldades para migrar para outros serviços, o que aumenta a relevância dos inadimplentes.

  1. Reversão para modicidade tarifária. Restrição da possibilidade de distribuidoras prestarem outros serviços ou, caso o façam, dever de reversão de parte do resultado para modicidade tarifária, o que as coloca em desvantagem frente seus concorrentes. Por exemplo, fora do Brasil, há grupos que oferecem serviços de consultoria de energia, plataforma de processamento, pagamento e análise automática de faturas de energia, gás, água e resíduos.

  1. Aumento do escopo de serviços de distribuição, sem a contrapartida correspondente de receita, uma vez que as distribuidoras têm sido sistematicamente chamadas pelo regulador para fazer fiscalizações e serem agentes mediadores do market place, o que também pode gerar outros tipos de conflito.

  1. Sobrecontratação de energia, ou seja, mais energia do que demanda de clientes. Apesar de este ponto ser contornável sob a ótica regulatória, com a cessão para o mercado livre, na prática pode encontrar barreiras dos financiadores, uma vez que os geradores preferem tomar o risco financeiro das distribuidoras.

Ainda que as distribuidoras de energia não sejam diretamente remuneradas pela tarifa de energia, a redução dessa receita, como regra, afeta sua gestão de caixa e possibilidades de financiamento, o que resulta em severos impactos nas contas das distribuidoras e, consequentemente, na remuneração dos acionistas. 

Dessa forma, a solução para o equilíbrio econômico-financeiro das distribuidoras deve ser prioridade de todo o setor, especialmente do agente regulador, porque a abertura de mercado já está ocorrendo na prática, independentemente do devido amparo regulatório, seja por meio da geração distribuída, seja por meio de novas estruturas como agregação de carga.

A alternativa que se desenha para as distribuidoras neste novo cenário é seu posicionamento como proprietária da rede, agente de entrega de energia e, futuramente, operadora inteligente do mercado, facilitando as transações entre comercializadores e consumidores e servindo a vários stakeholders, com interesses distintos.

Nessa perspectiva, seu papel chave estaria na otimização do sistema, por meio das inovações tecnológicas, como as smart grids, e na promoção de mercados competitivos. Para isso, entretanto, é necessário que se criem condições jurídico-regulatórias que propiciem a correta remuneração das distribuidoras e que as incentivem a investir nestas inovações tecnológicas.

Algumas soluções para o cenário atual que, na nossa visão, merecem ser refletidas, são:

  1. Separação do uso do fio e da venda de energia. Um desses exemplos, ainda em fase de desenvolvimento, são os sandboxes tarifários, projetos criados pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) para testes de novas modalidades tarifárias ou formas de faturamento, frente à necessidade de modernização das tarifas.

  1. Possibilidade de oferta de outros serviços. Ainda é de se pensar quais os potenciais serviços e como isso afetará os contratos de concessão, em vias de renovação.

  1. Supridor de última instância. Segregar o atual contrato em duas concessões, uma para utility e outra para supridor de última instância.

  1. Modicidade tarifária e desenhos institucionais de alternativas regulatórias e contratuais. Devemos simplesmente impor nova tarifa a todos os clientes, ou permitiremos que as distribuidoras ofereçam novos serviços sem que necessariamente parte da receita seja revertida para modicidade tarifária? Como parte do custo do desenvolvimento das atividades por essas empresas, poderíamos pensar em modelo regulatório no qual determinadas atividades seriam passíveis de execução sem que houvesse a necessidade de sua reversão para a modicidade tarifária. em termos de modelo, tal aspecto já estaria previsto no contrato de concessão, embasado em estudos técnicos e econômico-financeiros que embasam a concessão (Lei 8.987/1995, art. 5º), com informações claras a usuários, agentes de mercado e empresas interessadas ou responsáveis pela exploração das atividades.

Em termos gerais, o que se percebe é que existem questões cruciais para todo o setor, que passam pelo desenho das concessões de distribuição, e simplesmente renová-las sem prepará-las para o futuro, em que sequer podemos saber quais serviços existirão, é uma grande perda de oportunidade para o segmento. A realidade é que, em breve, poderemos estar discutindo (inclusive perante o Poder Judiciário) o reequilíbrio econômico-financeiro das concessões outorgadas às distribuidoras em razão de não termos aproveitado as oportunidades para avançarmos em aspectos urgentes para o setor elétrico neste momento. 


Mário Saadi é sócio das áreas de Direito Público, Infraestrutura e Pro Bono do Cescon Barrieu. É doutor em Direito do Estado pela USP, mestre em Direito Administrativo pela PUC-SP e bacharel em Direito pela FGV-SP. Professor de cursos de pós-graduação em Direito na FGV (SP e RJ). Autor de 6 livros e mais de 70 artigos envolvendo temas de Direito Administrativo.

Yasmin Yazigi de Conto é advogada associada da área de energia do Cescon Barrieu. Formada em Direito pela USP, cursa MBA na mesma universidade em Gestão de Riscos na Comercialização de Energia.

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