Opinião

A nova ordem mundial do gás e o Cone Sul

Volatilidade dos preços de gás e aumento previsto da demanda nos países da América do Sul podem resultar no desenvolvimento de um hub de gás na região, com transações e swaps via gasodutos e terminais de GNL

Por Ieda Gomes

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A invasão da Ucrânia pela Rússia e a decisão da União Europeia (UE) de reduzir em 2/3 suas importações de gás natural russo aumentaram a volatilidade de preços de gás natural nos mercados mundiais.

Além da guerra, outros fatores contribuíram: climáticos, baixa reposição de estoques desde 2021, aumento de consumo da China, cujas importações de GNL cresceram 19% no período 2021/20, e também do Cone Sul da América. A parada para manutenção de unidades de produção de gás/GNL também contribuiu para o desequilíbrio entre oferta e demanda de gás.

Em março de 2022 os preços do hub TTF atingiram o recorde de $70/MMBtu, contra $4,8/MMBtu em março de 2021. Os preços no mercado americano tiveram um aumento mais moderado, com Henry Hub evoluindo de uma média de $3,89/MMBtu no início de 2021 para $5,07/MMBtu no primeiro trimestre de 2022.

Até o final de 2022, a UE almeja reduzir suas importações russas de 155 Bcm/ano para 44 Bcm/ano, ou seja, um corte de 101 BCm. Além disso, a UE quer obrigar a reposição de 80% dos estoques de gás, até 1 de outubro, um volume adicional de 80 Bcm. Estima-se um aumento de importações por gasodutos de 10,3 Bcm (Argélia, Noruega, e Azerbaijão), e 50 Bcm de importações de GNL.

Cerca de 37% (38 Bcm) da meta viria por redução da demanda, uso de carvão, energias renováveis e pela parada de plantas industriais e termelétricas, cuja operação é inviável a preços tão altos.

Os EUA podem fornecer cerca de 15 Bcm de GNL, e existe capacidade mundial de liquefação suficiente para exportar 40 Bcm, mas se houver problemas de operação e a demanda asiática crescer, não haverá produção suficiente para atender o mercado. Espera-se que a Rússia direcione parte do gás para a China, mas o gasoduto Power of Siberia 1 tem capacidade máxima de 38 Bcm, e não está conectado aos campos que abastecem a Europa. A construção do Power of Siberia 2 (2600 Km), levará cerca de 5-6 anos para se concretizar.

Além de questões logísticas, a decisão da UE esbarra em questões contratuais, pois a redução drástica de volumes abaixo do take of pay (80%) implica em quebra de contrato. Por outro lado, o ultimato da Rússia em receber pagamento em rublos é também uma quebra contratual. Em retaliação ao não atendimento desse ultimato, a Rússia suspendeu a entrega de gás para Polônia e Bulgária.

As implicações para a América do Sul também são pesadas. O preço do GNL spot na região reflete o maior preço de oportunidade entre TTF (Europa) e JKM (Ásia). No caso da Argentina, dois recentes leilões da IEASA para compras de 17 cargas de GNL resultaram em preços de USD 29-45/MMBtu, um custo de $1,4 bilhão contra um total de $1,1 bilhão em 2021 para compra de 56 cargas. Em 2022, a Argentina precisa comprar mais 33 cargas, dispêndio total estimado de cerca de USD 4 bilhões. Apesar da produção de gás doméstico ter se recuperado aos níveis do início de 2020 (127 MMm3/dia), o pico de inverno sobe para 150 MMm3/dia. A capacidade de transporte de Vaca Muerta até a Grande Buenos Aires está saturada, requerendo a construção de novos gasodutos, Transport.Ar Producción Nacional,  de 1000 km e investimento de $ 3,7 bilhões. A primeira fase (Gasoduto Kirchner) já foi licitada, mas enfrenta problemas de aportes de recursos. A Argentina concluiu negociações com a Bolívia para comprar 14 MMm3/dia firmes, com preço de $7-9/MMBtu para os primeiros 8-10 MMm3/dia. Volumes acima dessas quantidades têm custo adicional de $9 /MMBtu. Esse preço é mais baixo que o do GNL, mas 5 vezes mais caro do que o gás doméstico ($3,5/MMBtu). Resta a dúvida se a Bolívia teria capacidade de entrega de volumes adicionais, já que o contrato com o Brasil tem prioridade (20MMm3/dia). Para o Brasil é vantajoso importar mais gás boliviano do que GNL, mas a Bolívia poderia optar por entregar o take or pay de 80%, por ser mais vantajoso vender para a Argentina. Se o gasoduto Rota 3 entrar em operação no segundo semestre de 2022, o Brasil poderia “revender” parte de sua quota de gás boliviano para a Argentina a preços mais altos do que os preços nos city-gates.

O Chile também deverá importar mais gás/GNL em 2022, devido à sua decisão de descontinuar termelétricas a carvão. Em 2021 o Chile importou 29 cargas, com previsão de importações semelhantes em 2022. O país, que também passa por um período de seca, vem importando gás argentino durante o verão, cerca de 7 MMm3/dia. Cogita-se a possibilidade do Chile maximizar importações de GNL contratados a preços mais baixos que o spot,  exportando uma parcela para a Argentina.

Essa dinâmica pode resultar no desenvolvimento de um hub de gás no Cone Sul, com transações e swaps via gasodutos e terminais de GNL.

 

 

 

 

Ieda Gomes é consultora independente e membro do conselho de administração de empresas internacionais de energia, infraestrutura e certificação

 

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