Opinião

Independência das agências reguladoras e o novo Governo

A mudança proposta nas leis das empresas estatais e das agências vai na direção oposta das instituições que apoiam esta geração de riqueza, contribuindo para manter o país na “armadilha da renda média” com baixo crescimento

Por César Mattos

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O novo governo que toma posse em 1º de janeiro já começa seus trabalhos na transição demonstrando pouco apreço à governança e independência de empresas estatais e agências reguladoras.

Proposta aprovada na Câmara dos Deputados na noite de 13/12 com total apoio do novo governo e remetida ao Senado reduz de três anos para um mês o período da chamada “quarentena reversa”. Esta restringe temporalmente a assunção de cargos diretivos em estatais e agências por “pessoa que atue como participante de estrutura decisória de partido político ou em trabalho vinculado a organização, estruturação e realização de campanha eleitoral”.

Este prazo de três anos foi definido tanto na lei das estatais (Lei 13.303/16) como na das agências (Lei 13.848/19), a qual analisamos com mais vagar. Também se previu nas duas leis não permitir indicação de Ministro de Estado, Secretário de Estado ou Município e titular de mandato no poder legislativo de qualquer ente da Federação, o que não está em discussão, por enquanto.

Note-se que o art. 5º anterior da Lei 9.986/2020 voltada para as agências já definia que para todos os dirigentes das agências seria exigida “reputação ilibada” e “elevado conceito no campo da especialidade”, o que, em tese, já deveria ser suficiente para garantir quadros técnicos e com independência da política. No entanto, com a percepção de que nem sempre o Presidente da República que indica os diretores cumpria e nem sempre o Senado que os sabatinava cobrava estas características, optou-se por, além de manter estes requisitos mais genéricos (podem caber muitas coisas no que se considera como “reputação” ou “elevado conceito”), introduzir aqueles requerimentos mais objetivos para as indicações na “quarentena reversa”.

A lei das agências fixou um período de mandato de cinco anos sem que o diretor da agência possa ser livremente demitido pelo Poder Executivo e eliminou a hipótese de recondução, evitando que os diretores em exercício fiquem mais “flexíveis” para com as demandas do Poder Executivo à medida que fosse chegando mais próximo do final do primeiro mandato.

E por que, afinal, se definiram estas restrições? Por que a independência dos dirigentes importa? Isso deriva do fato que a atividade política naturalmente investe mais no curto prazo que no longo: eleitores julgam políticos muito mais pelo que os afeta nos próximos meses do que nos próximos anos. E os políticos bem-sucedidos têm que ser responsivos a isto.

Já o horizonte de tempo de empresas e agências reguladoras deve ser mais longo. Na verdade, quando se trata de empresas ou agências reguladoras de infraestrutura, bastante longo, décadas. Spiller e Tommasi (2005) [1] enfatizam que, para agências regulatórias, esta “independência da política” atenua as possibilidades de expropriação de investimentos na regulação dos setores de infraestrutura: “O problema maior da regulação dos serviços de infraestrutura, sejam públicos ou privados, e portanto as questões que os políticos devem lidar, é como o oportunismo governamental, entendido como os incentivos que os políticos têm para expropriar –uma vez que os investimentos já foram realizados- as “quase-rendas” –seja sob propriedade privada ou pública, de forma a adquirir apoio político….o consumo massivo (o conjunto de consumidores se aproxima muito do conjunto de eleitores), as economias de escala e investimentos em custos afundados proveem ao governo a oportunidade para se comportar oportunisticamente vis a vis a firma investidora.”.

O objetivo de um regulador independente do governo é justamente sinalizar ao investidor um “compromisso crível” (credible commitment) maior do que ocorreria no caso de ausência de independência em relação à lógica de curto prazo da política. Essa ideia de independência como “compromisso crível” para implementar a racionalidade de longo prazo é destacada por Decker (2014)[2]“o estabelecimento de um regulador independente é visto como um compromisso do governo em restringir a interferência futura nos serviços públicos, particularmente em termos da futura expropriação de direitos de propriedade”…sendo “uma variante do problema mais geral de inconsistência temporal da política pública”.

E o papel das agências reguladoras seria nada mais nada menos que “oferecer um amortecedor (buffer) contra tal inconsistência temporal e também contra a flutuação nas preferências dos governos presente e futuros”. As agências reguladoras independentes, portanto, seriam uma forma de “amarrar as mãos do governo” em sua capacidade de expropriação dos investimentos, o que, ao reduzir incertezas, incrementaria o investimento. Mueller e Pereira (2002)[3] argumentam que o desenho das agências reguladoras no Brasil teve precisamente esta intenção de servir como mecanismo de credible commmitment para o investimento de longo prazo nos setores regulados.

Note-se que este desejo do “novo” governo em “desamarrar as mãos” não é exatamente novo. Em 2008, a Organização para a Cooperação de Desenvolvimento no Brasil (OCDE)[4] já constatava que “as agências têm operado sem independência do governo”. Este Relatório da OCDE já registrava a desconfiança do governo de então sobre estas entidades, o que havia motivado a tentativa de intervenção do Poder Executivo em 2003 sobre um reajuste de tarifa realizado pela Anatel[5].

A Lei 13.848/19, que se tornou a chamada “lei das agências”, e cuja modificação proposta será discutida no Senado, resultou de um Projeto de Lei do Senador Eunício Oliveira (PL 52/13) de 2013[6], tendo sido celebrada como afirmação da autonomia, especialmente decisória e financeira, conferida àqueles entes. Foi a vitória da ideia que a lógica de curto prazo não prevaleceria.

As restrições nas indicações não visam apenas a separação política (curto prazo) e técnica (longo prazo). Também se vedou a indicação de quem tenha participado em empresa ou entidade que atue no setor sujeito à regulação exercida pela agência reguladora e de membro de conselho ou de diretoria de associação, regional ou nacional, representativa de interesses patronais ou trabalhistas ligados às atividades reguladas pela respectiva agência. O objetivo destas restrições foi naturalmente separar os dirigentes das agências reguladoras dos entes regulados, evitando o fenômeno da captura[7]. Este seria o outro lado da moeda da tese de “expropriação dos investimentos” pela política: a possibilidade do Poder Executivo e/ou a agência reguladora fazerem o oposto, transferindo rendas para os agentes regulados em detrimento da sociedade.

A construção destas restrições levou tempo para ocorrer no Legislativo, como deve ser para mudanças desta envergadura, e representou enorme avanço institucional para a regulação no país. Estes são os tipos de regras que propiciam as condições adequadas para o investimento e crescimento econômico. Basicamente a construção e implementação de instituições que geram condições para se “criar” riqueza e não “expropriar” quem a cria.

A mudança proposta nas leis das empresas estatais e das agências de destruir parte da regra de “quarentena reversa” vai na direção oposta das instituições que apoiam esta geração de riqueza, contribuindo para manter o país na “armadilha da renda média” com baixo crescimento. É fundamental que a Casa Revisora não acate as mudanças propostas na Câmara.

 

[1] Spiller, P. e Tommasi, M.: The Institutions of Regulation: An Application to Public. Chapter 20. in Handbook of New Institutional Economics, 2005, pp 515-543 from Springer.

[2] Ver Decker,C. :Modern Economic Regulation: An Introduction to Theory and Practice. 2014.

[3] Ver Mueller, B e Pereira, C. o : Credibility and the design of regulatory agencies in Brazil. Brazil. Journal of Political Economy. [online]. 2002, vol.22, n.3, pp.449-472.  Epub Sep 25, 2020.

[4] OCDE: Relatório sobre a reforma regulatória. Brasil: Fortalecendo a Governança para o Crescimento. 2008.

[5] Ver Mattos,C.:”Telecomunicações: Reajuste e Contrato”. Conjuntura Econômica – FGV/RJ – Novembro de 2003, Vol. 57 nº 11.

[6]  https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/111048

[7] A ideia de Stigler (Stigler,G.: The Theory of Economic Regulation, The Bell Journal of Economics and Management Science Vol. 2, No. 1 (Spring, 1971)) era que a introdução de regulações não se derivava da necessidade de correção de falhas de mercado, mas sim da captura dos reguladores pelos regulados. Conforme o autor “a tese central deste artigo é que, como regra, a regulação é adquirida pela indústria e desenhada e operada primariamente para o seu benefício”.

 

*artigo originalmente publicado no blog WebAdvocacy

 

César Mattos é mestre e doutor em economia, consultor legislativo da Câmara dos Deputados, ex secretário de advocacia da concorrência e competitividade do Ministério da Economia, ex conselheiro do CADE.

 

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