Opinião

Separando o joio do trigo, ou a cana dos grãos

Deveríamos valorizar as vantagens competitivas do nosso etanol e fortalecer esse biocombustível como ferramenta de segurança energética em meio ao conturbado cenário internacional.

Por Paula Kovarsky

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O reconhecimento global do papel dos biocombustíveis na descarbonização tem crescido exponencialmente à medida em que entendemos o tamanho do desafio e que não existe uma solução única para a questão das mudanças climáticas, especialmente nos chamados “hard-to-abate-sectors” - setores cujo caminho para redução de emissões é inviável ou desconhecido, como aviação e navegação, por exemplo. Mas a guerra Rússia-Ucrânia exacerbou discussões importantes sobre a urgência e o impacto das ações relacionadas às mudanças climáticas.

O aumento dos preços de petróleo e seus derivados, e seu impacto inflacionário mundo afora, tem servido de argumento para uma potencial reversão na agenda global de descarbonização. Argumentos extremos, típicos de momentos de crise, certamente encontrarão equilíbrio mais cedo ou mais tarde. É clara a necessidade de planejar uma transição energética de tamanha proporção de forma ordenada, partindo de conceitos básicos como evitar a concentração de recursos críticos em um único supridor – a meu ver a tese da diversificação da cadeia de fornecedores na verdade representa uma oportunidade para as energias renováveis em geral e os biocombustíveis em particular.  No fim, seja porque as medidas de arrocho financeiro dos bancos centrais mundo afora com intuito de conter a escalada da inflação inevitavelmente terão impacto na demanda, ou porque a guerra em algum momento termine, os preços de energia cederão.

Mas outra questão importante que ganhou atenção internacional por conta da tensão na Ucrânia e precisa ser considerada quando falamos dos biocombustíveis é a possível competição com alimentos. Nesse debate a discussão está relacionada a qual deveria ser o uso mais adequado da terra, considerando que o crescimento da produção de biocombustíveis  impactariam negativamente na capacidade global de atender à crescente demanda por alimentos. Sempre argumentei que a transição energética e as soluções de descarbonização precisavam ser adequadas às questões socioeconômicas de cada região, tendo em vista as prioridades de cada país. A competição com alimentos é sem sombra de dúvida um tema importantíssimo a ser levado em consideração. Daí a colocar todos os biocombustíveis no mesmo balaio me parece tão simplista quanto acreditar que é possível resolver a questão das mudanças climáticas com uma solução única.

Para começo de conversa, é preciso separar as chamadas 1ª e 2ª gerações de biocombustíveis. A 1ª geração engloba todos os biocombustíveis produzidos a partir de um cultivo agrícola e que pode ser usado para produzir alimentos (cana-de-açúcar, milho, trigo etc.). Já tudo aquilo que é produzido a partir da biomassa residual (o bagaço da indústria ou a palha que sobra no campo depois da colheita) é classificado como um produto de 2ª geração.

Na 2ª geração, portanto, não há competição com alimentos, uma vez que esses biocombustíveis são inclusive reconhecidos globalmente como um produto diferenciado de alto valor agregado por não demandar um único hectare adicional de terra plantada, além de representar a inovação e a circularidade que o mundo precisa. O etanol de segunda geração (E2G) produzido de maneira pioneira pela Raízen é um exemplo desse tipo de biocombustível, assim como o biogás produzido a partir da vinhaça e torta de filtro também produzido pela empresa e assim como todos os outros produzidos a partir de óleo de cozinha usado, lixo urbano, dentre outros resíduos.

Entretanto, mesmo dentro da 1ª geração existem diferenças muito relevantes. Óleos de soja e palma dominam a produção global de biodiesel, enquanto cana-de-açúcar e milho dividem os holofotes quando o assunto é etanol. É aí que precisamos qualificar o debate.

A Ucrânia é o sexto maior produtor de milho do mundo, gerando o temor de desabastecimento que impulsionou os preços em mais de 20% desde o início da guerra, dessa e de outras commodities agrícolas produzidas em áreas envolvidas no conflito. Demorou pouco para que proliferassem as manifestações anti-biocombustíveis de 1ª geração, alegando que estes são causadores de pressão nos preços globais de alimentos. Essa tese pode até ser relevante para os grãos. Mas no caso da cana-de-açúcar a história é bem diferente.  Vamos aos fatos:

Apenas 7% da área agricultável global é dedicada a produção de biocombustíveis, totalizando, para o mundo inteiro, 81,6 milhões de hectares – uma área um pouco maior que o estado do Texas. Desse total, milho e soja somam 55 milhões de hectares enquanto a cana-de-açúcar representa apenas 5 milhões (gráfico 1).  Além disso, o cultivo de cana tem o maior rendimento de etanol por hectare plantado (gráfico 2).

 

Fonte: AMI, OECD, FAO, USDA, Oil Word (UFOP)                            Bordonal et al. (2018); Neves et al. (2020).

 

Por mais que haja associação da produção de biocombustíveis com a diminuição da produção de alimentos ou supressão da vegetação nativa em outras áreas, isso acontece predominantemente em países europeus. No Brasil não há evidências de competição significativa entre produção de biocombustíveis e alimentos a ponto de prejudicar o abastecimento, de acordo com relatório publicado pelo WWF em 2021 sobre a produção sustentável de biocombustíveis no Brasil.

Outro ponto de vantagem sobre uso da terra: no Brasil, apenas 1% da área total do país é utilizada para plantio de cana-de-açúcar (MAPBIOMAS, 2020), sendo que esta parcela é suficiente para suprir 19% da matriz energética nacional na forma de etanol ou bioeletricidade (BEN, 2021) e, ao mesmo tempo, posicionar o Brasil como maior produtor mundial de açúcar.

Temos um potencial incrível quando pensamos no futuro e na possibilidade de aumentar a produção de biocombustíveis até 2030, mesmo considerando como disponível apenas áreas degradadas ou de baixa produtividade (pastagens). O aumento de produtividade da pecuária brasileira poderia liberar cerca de 35 milhões de hectares para outros usos sem qualquer pressão sobre desmatamento de vegetação nativa. Se subtrairmos a quantidade necessária para a demanda de alimentos, ainda restam cerca de 25 milhões de hectares para a produção de biocombustíveis, suficientes para quase triplicar a produção atual de etanol de 1ª geração (sem considerar outros potenciais, como cogeração de energia, biogás, E2G etc.). Não à toa, o European Joint Research Centre (JRC) considerou o etanol de cana-de-açúcar como tendo baixo risco na mudança indireta do uso da terra (iLUC).

Mas as vantagens da cana-de-açúcar como matéria prima para produção de biocombustíveis vão muito além da pouca área comprometida para a sua plantação ou o seu rendimento. A cana é de longe a planta mais eficaz na conversão de energia solar em carbono e tem uma das melhores pegadas de carbono do mundo dentre as tecnologias atuais de primeira geração, segundo o gráfico a seguir.

 

 

Resumo da ópera: o etanol de cana-de-açúcar é muito eficiente, tem produção rastreável, baixa pegada de carbono e seu possível impacto na cadeia de alimentos é pouco relevante. Ainda, os resíduos gerados no processo produtivo possibilitam dobrar a produção em bases energéticas ao somarmos cogeração de energia elétrica, E2G, biogás e outros possíveis aproveitamentos na medida que avançam tecnologias como biobunker e SAF. Há ainda a possibilidade de se evoluir com o hidrogênio contido na molécula do etanol. Deveríamos focar em separar a cana dos grãos, valorizar as vantagens competitivas do nosso etanol e fortalecer esse biocombustível como ferramenta de segurança energética em meio ao conturbado cenário internacional. Mas, enquanto isso o governo brasileiro segue flertando com a possibilidade de reduzir a competitividade do etanol e desestimular sua produção e seu consumo.  Acorda Brasil!

 

 

 

 

Paula Kovarsky, engenheira mecânica e de produção, com MBA em finanças corporativas, tem mais de 20 anos de experiência no setor de energia e é VP na Raízen.

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