Opinião

Paradoxos da Transição Energética

Os paradoxos introduzidos pela Transição Energética têm de ser estimulados e combatidos, conforme o caso, por meio de mudanças em políticas públicas e por melhor coordenação entre estado e empresas no sentido de levar o Brasil para a sua revolução industrial

Por Telmo Ghiorzi

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A Transição Energética está em curso, com evidências cada vez mais robustas de que se trata de processo irreversível e de amplo alcance mundial. Os efeitos serão diversos em função dos contextos de cada país. No Brasil, entre outros efeitos, a Transição traz à tona dois paradoxos. Ambos associados à abundância de recursos naturais que caracteriza o país, mas que precisam ter tratamentos distintos. Um deles, devido à matriz energética já avançada em termos de fontes renováveis e à produção de petróleo com baixos custos e baixas emissões, deve ser estimulado. O outro, devido ao atraso no desenvolvimento industrial do país, deve ser combatido.

Fenômeno similar à mudança em curso foi observado com a introdução do petróleo e do gás natural na matriz energética global a partir do final do século XIX. O carvão passou a ter demanda ainda crescente, porém mais lentamente do que o crescimento da demanda pelos novos fósseis recém introduzidos na economia. A motivação inicial da inserção do petróleo na matriz energética foi a busca por alternativa ao óleo de baleia, então utilizado para iluminação. No começo do século XX, após a invenção da lâmpada elétrica, o petróleo e seus derivados passaram a ser utilizados pela então nascente indústria dos veículos movidos por motores à combustão interna e para gerar energia elétrica.

A redução relativa da demanda por carvão ocorreu pelo aumento da disponibilidade e disseminação do uso de petróleo, e não por restrições à produção de carvão. A redução da demanda por carvão não o eliminou da matriz energética global.

Dinâmica similar vai caracterizar a Transição Energética pela qual o mundo passa agora. Embora haja restrições crescentes ao uso do petróleo, motivadas pela necessidade de combate às mudanças climáticas, a principal força-motriz dela é o aumento da disponibilidade e do uso de fontes renováveis, e não as restrições ao uso do petróleo. Além disso, o petróleo não será eliminado da matriz energética global.

Diferentemente do caso do carvão, os diversos cenários construídos por organizações especializadas apontam para redução absoluta, não apenas relativa, no consumo de petróleo, de gás natural e de carvão. A aplicação para outros fins que não-energéticos (e.g., químicos) e a dificuldade de substituição do petróleo em aviões e navios estão entre os fatores que vão contribuir para manter presença relevante do petróleo na matriz energética global.

As fontes de petróleo cuja produção tende e perdurar serão aquelas selecionadas dentre as de menor custo e de menor emissão de Gases do Efeito Estufa (GEE). Nestes quesitos, o petróleo produzido no Brasil está entre os melhores do mundo.

Em paralelo, o Brasil tem abundância de fontes energéticas renováveis. Isto é, possui potencial remanescente de geração hidrelétrica, condições favoráveis para produção de biocombustíveis, sol e vento de razoável intensidade e estabilidade em quase todo o território nacional. O Brasil tem hoje 45% de sua matriz energética proveniente de fontes renováveis, contra 18% no mundo. Os cenários elaborados por especialistas convergem para 60% como fração suficiente para zerar as emissões líquidas de GEE. O Brasil está, por assim dizer, muito perto da emissão zero. E pode, portanto, rapidamente atingir este patamar.

Reside aqui o primeiro paradoxo. A qualidade e o potencial da matriz energética e a qualidade de nossas reservas petrolíferas vão induzir demanda crescente do petróleo produzido no Brasil, com aumentos expressivos na fração a ser exportada. A Transição Energética, embora seja movida pela necessidade de reduzir consumo e produção de petróleo, vai acabar estimulando e promovendo o aumento da produção de petróleo no Brasil.

Este paradoxo nasce com a Transição Energética e deve ser estimulado, pois ele combate as mudanças climáticas globais e estimula o crescimento da economia do Brasil. A indústria local de petróleo, que há décadas estimula crescimento econômico do Brasil, tende a manter esse papel durante a Transição.

A abundância de recursos naturais que introduz o paradoxo positivo descrito acima é a raiz de outro paradoxo; este, todavia, indesejável. Ele é, de certa forma, clássico e maduro, estando presente há séculos na economia global, incluindo o Brasil. Trata-se do chamado Paradoxo da Abundância ou da Maldição dos Recursos Naturais. O nome deriva do fenômeno, frequentemente observado, de que países com abundância de recursos naturais apresentam taxas de crescimento inferiores àquelas observadas em países com escassez destes recursos.

A expressão foi usada pela primeira vez pelo economista britânico Richard Auty, em seu livro “Sustaining Development in Mineral Economies: The Resource Curse Thesis”, publicado em 1993. Desde então, o fenômeno tem sido objeto de pesquisa e de formulação de caminhos para superá-lo.

Não há controvérsias sobre a importância de combater este paradoxo, pois ele limita o crescimento econômico e, portanto, o bem-estar social da população. As variações na demanda e nos preços internacionais de recursos naturais são incontroláveis e, por isso mesmo, tornam altamente vulneráveis e instáveis as economias que dependem deles.

Os estudos sobre o Paradoxo da Abundância convergem no sentido de que a abundância de recursos naturais não causa, por si só, redução do crescimento. A causa reside na excessiva concentração da economia na mera exploração destes recursos, sem que haja concomitante desenvolvimento industrial. Não há contradição entre exploração de recursos naturais e desenvolvimento industrial. Ao contrário, ambas as rotas podem e devem coexistir.

O combate ao Paradoxo da Abundância deve ter como ferramenta principal o desenvolvimento no país das competências necessárias para desenvolver tecnologias em vez das competências para meramente fabricar e usar estas tecnologias. É preciso ter o acúmulo de conhecimentos necessários para conceber, desenhar, especificar, fabricar e usar bens e serviços industriais que sejam diversificados, de alta sofisticação e complexidade tecnológica, e que busquem cobrir a demanda interna e sobretudo a externa, sem deixar de lado a exploração racional dos recursos naturais.

As pesquisas convergem para que se evite o princípio das vantagens comparativas. Explorar e ficar restrito às vocações naturais mostraram ser estratégias insuficientes para o desenvolvimento sustentável da economia. As evidências sugerem que quebrar paradigmas e partir para avanços em competências tecnológicas é o caminho mais célere e seguro para superar a fase da economia emergente.

A atividade industrial é menos vulnerável a flutuações de demanda e preços de recursos naturais porque ela consegue responder a flutuações com o desenvolvimento e introdução de novidades no ambiente de negócios. Estas novidades com êxito comercial, isto é, as inovações, resultam do processo de destruição-criadora. Como afirmou Joseph Schumpeter (1883-1950), o pai da Economia da Inovação, em seu livro de 1942 (“Capitalismo, Socialismo e Democracia”), esse processo constitui a essência e a principal força-motriz do crescimento econômico.

A abundância de recursos naturais acabou contribuindo para que alguns países ainda não tenham realizado sua revolução industrial. A transformação pela qual passaram a Inglaterra, os EUA, outros países da Europa ocidental, Japão, Coreia do Sul e outros países da Ásia, e pela qual passa agora a China, ainda não foi realizada pelos países emergentes, incluindo o Brasil.

Essa transformação requer esforço deliberado e coordenação entre ações do estado e das empresas. Ela não é rápida nem segura. Ao contrário, tende a levar décadas e é caracterizada por permanentes incertezas. Contudo, é insubstituível como meio de conduzir países à condição de crescimento econômico robusto e sustentável.

Colocando em perspectiva a Transição Energética, o Brasil tem em seu futuro próximo, mais uma vez, a oportunidade - ou, talvez mais precisamente, a obrigação- de ancorar em sua abundância de recursos naturais a concepção e a implantação de rotas para avançar em sua revolução industrial.

O cenário a ser projetado e perseguido requer mais do que meramente usar as inovações que vão permitir a substituição de fontes fósseis por renováveis. É preciso aproveitar a oportunidade e tornar o Brasil, para além de mero usuário das tecnologias, em protagonista no desenvolvimento destas inovações. É preciso mudanças em políticas públicas para que elas passem a impulsionar empresas brasileiras a desenvolverem pessoas, sistemas, rotinas, equipamentos e outros recursos necessários para desenvolver as tecnologias da Transição Energética.

Ou seja, não basta ao Brasil ser mero usuário ou fabricante de veículos elétricos, ou de equipamentos para produção de energia eólica ou solar, ou da infraestrutura para captura e injeção de GEE nos reservatórios rochosos de onde o petróleo é extraído. Estas tecnologias são essenciais para a substituição do petróleo por fontes renováveis e vão contribuir para preservar o baixo custo e as baixas emissões de GEE na produção de petróleo no Brasil. O que será positivo para a economia do país, pois o excedente de petróleo de baixo custo e baixas emissões resultará em mais exportações e em acúmulo de divisas para o país.

Mais relevante do que usar estas inovações é acumular as competências necessárias ao desenvolvimento delas. Pois estas capacidades é que vão pavimentar a revolução industrial pela qual o Brasil ainda não passou.

O Brasil testemunhou ciclos econômicos importantes ligados à exploração de recursos naturais. Muitos deles ainda presentes e relevantes para a economia do país. Entre estes ciclos, destacam-se a exploração de pau-brasil, de borracha natural, de cana-de-açúcar, de café, de soja, de ouro, de ferro e de petróleo.

Afora exceções pontuais, estes ciclos não transformaram o país em referência mundial no desenvolvimento das tecnologias necessárias para explorar estes recursos naturais, nem tampouco naquelas que agregam valor a estes recursos depois de que eles são extraídos. O Brasil não se destaca pelo desenvolvimento das tecnologias requeridas para fabricar e usar o maquinário utilizado na produção e beneficiamento dos produtos do agronegócio, de metais, e nem mesmo de petróleo. Embora expoente em exploração de petróleo em águas profundas, o país se destaca como referência mundial no uso, mas não no desenvolvimento de novas tecnologias.

Será frustrante, para dizer o mínimo, se nos estágios mais avançados da Transição Energética o Brasil passar a ser reconhecido como grande, mas mero usuário de fontes energéticas renováveis e das tecnologias necessárias para isso. O país tem todos os elementos necessários para ser uma importante referência global tanto no uso de fontes renováveis quanto no desenvolvimento das tecnologias necessárias para isso.

Os paradoxos introduzidos pela Transição Energética têm de ser estimulados e combatidos, conforme o caso, por meio de mudanças em políticas públicas e por melhor coordenação entre estado e empresas no sentido de levar o Brasil para a sua revolução industrial. Embora não seja ainda urgente, a trajetória é difícil e o esforço requerido sugere que comecemos o quanto antes.

 

 

 

 

Telmo Ghiorzi é secretário-executivo da ABESPetro, doutor em políticas públicas pela UFRJ, pós-doutor em administração pela FGV, mestre em engenharia de petróleo pela Unicamp e engenheiro mecânico pela UnB. Possui mais de 30 anos de experiência em Óleo & Gás, Engenharia & Construção e outros setores industriais.

 

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