Opinião

O efeito da cobertura vegetal sobre a produção de energia elétrica

A alta evaporação resultante da irrigação por aspersão “rouba a água” que, em condições naturais, passaria pelas usinas hidroelétricas. Ou seja, há competição pela água entre os setores agrícola e energético

Por Jerson Kelman

Compartilhe Facebook Instagram Twitter Linkedin Whatsapp

Mitos nascem da generalização de alguma observação que é verdadeira apenas numa circunstância específica. Por exemplo, os médicos da Idade Média aplicavam sangrias. Se o problema fosse pressão alta, a terapia era bem-sucedida. Nos demais casos...

A recente legislação sobre capitalização da Eletrobras reserva bilhões de reais para a “revitalização de bacias hidrográficas”. Certamente não faltarão projetos para usar esses recursos baseados no mito de que reflorestar bacias hidrográficas seja receita universal para criar água e evitar crises hídricas.

O mito decorre da observação verdadeira de que as nascentes frequentemente se tornam intermitentes quando se troca floresta nativa por vegetação rasteira. Em sentido contrário, quando uma área é reflorestada, diversos processos naturais se modificam positivamente. Os galhos e troncos das árvores passam a reter parte da chuva, diminuindo a erosão. O solo fica mais permeável, funcionando como uma esponja que estoca água durante as chuvas e libera durante as estiagens. Em dias sem chuva, o ar fica mais úmido, a temperatura mais amena e, principalmente, as nascentes voltam a ser perenes. Claro, isso é muito bom!

Porém, não é em geral verdade que o reflorestamento aumente a vazão média dos rios. Na realidade, uma área florestada produz menor escoamento superficial em tempo chuvoso e menor escoamento subsuperficial em tempo firme. Explicação: como uma densa floresta transpira muito, parte da água retida no solo volta para a atmosfera antes de alcançar os rios. Cito duas referências, disponíveis aqui e aqui.

Se o leitor se lembrar do conceito de ciclo hidrológico, saberá que a água evaporada retorna à superfície (terra ou mar) na forma de chuva ou neve. A precipitação pode ocorrer em qualquer lugar, não necessariamente na mesma bacia hidrográfica. Por exemplo, parte da água que evapora da floresta amazônica volta como chuva na região Sudeste. É o que se chama de “rios voadores”.

Para efeito de “revitalização”, importa saber que o reflorestamento diminui a frequência de enchentes e secas, devido à lenta liberação da água retida no solo, o que é obviamente bom. Melhor ainda se for ao longo dos rios, para restaurar a mata ciliar. Mas não procede a crença que o reflorestamento aumenta a produção de eletricidade nas hidroelétricas localizadas na mesma bacia hidrográfica.

Como “revitalização” é um conceito vago, é possível que se cogite de aplicá-lo no cerrado para frear a expansão da agricultura irrigada. Por exemplo, recente reportagem da BBC faz menção à “destruição do cerrado pela agropecuária” e mostra cenas dos reservatórios vazios de hidroelétricas na presente crise hídrica.

Consciente ou inconscientemente esse tipo de matéria serve aos interesses dos países que competem com o Brasil na exportação de produtos agrícolas (por exemplo, EUA) ou que subsidiam os seus produtores nacionais (por exemplo, França).

O que a reportagem chama de “destruição do cerrado” é na realidade o resultado de admirável salto científico e tecnológico que transformou terras inférteis num celeiro que alimenta cerca de 1 bilhão de pessoas, como explicam dois notáveis brasileiros, Roberto Rodrigues e o indicado ao Prêmio Nobel, Alysson Paolinell.

Porém, é verdade que a alta evaporação resultante da irrigação por aspersão “rouba a água” que, em condições naturais, passaria pelas usinas hidroelétricas. Ou seja, há sim competição pela água entre os dois setores – agrícola e energético. Não é nada óbvio em que circunstâncias é melhor para o país priorizar o uso da água para produzir alimentos ou energia elétrica. É preciso que a Agência Nacional de Águas e Saneamento (ANA), junto com as demais entidades que integram o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos, resolvam o dilema em cada caso específico, levando em consideração que uma não-decisão é em geral a pior decisão, e que decisões difíceis devem ser preferencialmente tomadas fora das crises hídricas.

Jerson Kelman foi o principal dirigente da ANA, Aneel, Light e Sabesp

Outros Artigos