Opinião

Geopolítica e transição energética

Se vale a máxima de que num cenário de tanta volatilidade, diversificação é sempre uma boa forma de reduzir o risco e, por que não, aumentar as chances de acerto, o mesmo se aplica à transição energética

Por Paula Kovarsky

Compartilhe Facebook Instagram Twitter Linkedin Whatsapp

Há muitos anos, uns 15 pelo menos, participei de um painel sobre oferta de gás natural no Brasil e falávamos da possibilidade de o país virar um exportador de gás a partir da liquefação deste produto.

Essa discussão segue viva, e tanto tempo depois, mesmo com todo o avanço do pré-sal, ainda não conseguimos chegar a um consenso. Mas, também, nem é esse o tema deste artigo. Naquele mesmo evento fui questionada por um acadêmico que dividia o painel comigo se aquela discussão sobre exportar gás natural não seria mais um movimento imperialista de nações desenvolvidas querendo manter o Brasil na posição de “simples exportador de commodities” em vez de promover a industrialização do país.

Me lembro como se fosse hoje da minha hesitação ao responder, dadas as possíveis implicações de uma resposta dessas, vinda de uma pessoa que representava na época uma multinacional, num evento público, que tinha na plateia figuras quase mitológicas de um Brasil nacionalista. Mas na hora me deu uma luz, citando uma fala do meu sábio pai: “Deus, se existe, é um grande gozador”. Bastava olhar para os países que eram os maiores produtores de petróleo para constatar que havia uma intercessão bem alta com países classificados como “subdesenvolvidos” ou “em desenvolvimento”.

O que seria desses mesmos países então se não tivessem sido beneficiados com riquezas naturais passíveis de exportação e, portanto, com potencial enorme de geração de receita? O que seria desses países se não tivessem esses recursos? E, por fim, de que valeria essa riqueza se ela continuasse encalhada debaixo de centenas de metros de água ou terra? A associação com países cujos governos eram ditaduras nem me veio à cabeça na época poderia ter completado a resposta perguntando se o problema era a geração de riqueza ou a distribuição dela.

Se alguém me perguntasse há três anos qual seria a probabilidade de o mundo ser assolado por uma pandemia que levaria a população mundial a se isolar em casa por meses, a parar de viajar ou a usar máscara durante mais de dois anos, eu provavelmente diria ser baixíssima. Mas, se na sequência me perguntassem se eu achava possível uma invasão como a que estamos vendo, num país da Europa, iniciada por uma ditadura produtora de petróleo e gás, eu perderia totalmente a vergonha e diria com convicção que a chance era zero.

Mas eis que cá estamos lidando com a combinação perversa dos dois eventos, ainda por cima em sequência, levando os preços de petróleo primeiro para o terreno negativo e depois para perto de altas históricas.

Se os parágrafos anteriores parecem desconectados, vale uma reflexão que talvez nos ajude a avançar na agenda da transição energética global, tirando proveito de momentos de crise que nos tiram da zona de conforto e abrem espaço para grandes transformações, mas, ao mesmo tempo, deixando de lado os exageros típicos desses momentos. Podemos aterrizar grandes movimentos pendulares em uma jornada ambiciosa, porém concreta e realista.

Há cerca de cinco anos falávamos no boom da inovação e das teses de abundância do Vale do Silício, que baixariam drasticamente os custos de energias renováveis, notadamente solar e eólica, deslocando combustíveis fósseis e levando a indústria de petróleo a um melancólico fim em uma década. A questão das emissões em mobilidade seria resolvida da noite para o dia por meio da eletrificação, levando as empresas de petróleo a reduzir seus investimentos e a oferta do produto.

Vem a pandemia, a demanda por derivados de petróleo cai drasticamente e os preços da commodity atingem o território negativo. Ainda assim, sob o impacto da pandemia e a conscientização global sobre a necessidade de dar mais crédito à ciência, os Estados Unidos e a Europa anunciam compromissos de reconstrução atrelados a metas ainda mais ambiciosas de descarbonização.

Os preços do petróleo reagem na medida que vai arrefecendo a pandemia, gerando preocupação geral sobre a inflação. Demora pouco começam a atribuir parcela da culpa da inflação aos investimentos em energias renováveis, a greenflation. E então um dos maiores produtores de petróleo mundial, invade um vizinho na Europa, bem na hora que a recuperação de demanda ganha força, levando preços de petróleo e gás rapidamente para a lua. Os alarmistas de plantão argumentam que a decisão de reduzir investimentos na indústria de petróleo & gás estava equivocada, potencializando a crise e o aumento de preços, e que essa situação atrasaria drasticamente a transição energética.

Que tal uma versão mais equilibrada e ponderada dessa sequência de eventos? O desafio da transição energética é gigantesco e seria ingênuo acreditar numa solução única e rápida. Não à toa estamos falando de uma transição. A indústria do petróleo terá, sim, seu papel durante essa transição, e arriscaria dizer de protagonista na alocação de investimentos e de conhecimento tecnológico na busca de alternativas energéticas mais limpas e mecanismos de compensação. Ao mesmo tempo, os investimentos em energias renováveis vão gerando escala e abundância, reduzindo a pressão inflacionária pela redução dos custos e da necessidade de subsídios, além de reduzir a demanda por combustíveis fósseis no tempo e consequentemente seus preços.

Se a Europa tomou uma decisão de acelerar sua transição energética por meio da eletrificação de sua frota e substituição de energia nuclear e carvão por gás natural e, de repente, uma guerra colocou esse suprimento em cheque, me arrisco a dizer que parcela relevante do suposto erro estratégico tem muito mais a ver com concentração de suprimento do que com a decisão em si de avançar na transição. E claro, vale lembrar que a alta volatilidade do petróleo atrelada ao risco político nos principais países produtores também se aplica à concentração de disponibilidade de metais preciosos necessários ao desenvolvimento das baterias que suportam a tese de eletrificação em poucos países, nem todos considerados estáveis.

Tudo isso é, obviamente, muito complexo. Mas na minha tentativa de simplificar para entender e aprender, acho que podemos tirar algumas boas ideias de toda essa conjuntura desafiadora.

Se vale a máxima de que num cenário de tanta volatilidade, diversificação é sempre uma boa forma de reduzir o risco e, por que não, aumentar as chances de acerto, o mesmo se aplica à transição energética. Diversificação de alternativas, diversificação nas apostas tecnológicas, diversificação de fontes de suprimento, diversificação de risco político, e por aí vai. Só para não perder a viagem, reforço a importância dos biocombustíveis nessa diversificação.

E, para quem de alguma forma acredita em Deus, de duas uma: ou Ele está testando nossas convicções sobre a necessidade de avançar rápido na transição, ou deve estar achando muita graça dessa confusão toda.

Paula Kovarsky, engenheira mecânica e de produção, com MBA em finanças corporativas, tem mais de 20 anos de experiência no setor de energia e é VP na Raízen.

Outros Artigos