Opinião

Cinquenta tons de verde

Seria do interesse tanto do Brasil quanto de países desenvolvidos como a Alemanha criar um mercado para o hidrogênio verde

Por Jerson Kelman

Compartilhe Facebook Instagram Twitter Linkedin Whatsapp

A pureza do ouro é medida em quilates, sendo 24 quilates o maior valor, que corresponde a 100% de pureza. Um ouro com 18 quilates tem 18/24 ou 75% de pureza. De forma análoga, cada kWh entregue a um consumidor industrial de energia elétrica pode ser visto como uma “mistura de elétrons” produzidos tanto por fontes renováveis quanto por fontes não-renováveis.

Assim como especialistas atestam a pureza do ouro, a CCEE poderia certificar a porcentagem de energia renovável contida na “mistura de elétrons” de cada consumidor em determinado período a partir de seus contratos de compra de energia. A autoprodução também faria parte desta conta, se for o caso.

Indústrias que utilizem energia elétrica para produzir bens destinados a mercados sensíveis à preocupação com as mudanças climáticas poderiam rotular os seus produtos com base nesses certificados, de forma análoga ao que se faz com a eficiência energética de eletrodomésticos.

A certificação ganharia maior relevância se os países desenvolvidos se interessassem pelo “tom verde” da energia elétrica utilizada na produção industrial. A Alemanha, por exemplo, anunciou um ambicioso programa de 9 bilhões de euros para incentivar o “hidrogênio verde” produzido pela eletrólise da água, que a decompõe em oxigênio e hidrogênio, pela passagem de uma corrente elétrica proveniente de fontes renováveis. Atualmente mais de 95% do hidrogênio produzido no mundo é “cinza”, por ser extraído de algum hidrocarboneto, gerando CO2 no processo.

Seria do interesse tanto do Brasil quanto da Alemanha, assim como dos demais países desenvolvidos, criar um mercado para hidrogênio verde com “pureza” superior a, digamos, 75%. O preço seria quase certamente inferior a, por exemplo, o da Arábia Saudita, que está construindo a maior usina de hidrogênio verde 100% do mundo com a instalação de 4 GW de solar e eólica, e investimento de US$ 5 bilhões.

O custo de produção do hidrogênio verde na Arábia Saudita será inescapavelmente alto porque o fator de capacidade da geração eólica e solar é baixo, mesmo numa região ensolarada. Significa que a planta de eletrólise só conseguirá funcionar de forma intermitente. No Brasil as variadas fontes renováveis, principalmente hidrelétricas, resultariam num funcionamento quase contínuo. No Nordeste, em particular, seria possível produzir hidrogênio verde para exportação com “pureza” superior a 90%, a custo relativamente baixo (o custo da planta de eletrólise seria diluído por uma maior produção de hidrogênio).

Para a Alemanha, a aceitação de hidrogênio verde com pureza acima de 75% significaria substituir maior volume de combustíveis fósseis por energia renovável, sem aumento de dispêndio em relação ao já planejado. Para o Brasil, significaria aproveitar este novo mercado de forma mais competitiva e, possivelmente, a utilização de hidrogênio verde no transporte e na indústria, com a consequente redução de emissão interna de gases de efeito estufa[1]. Um ganha-ganha!

A diplomacia brasileira tem uma oportunidade de ouro (de 24 quilates!) para atuar na defesa dos interesses comerciais do país e, ao mesmo tempo, recuperar nosso papel de liderança mundial em temas ambientais.

[1] Rafael Kelman et al, Can Brazil become a green H2 powerhouse? Journal of Power and Energy Engineering, 2020, 8

Jerson Kelman é professor da COPPE-UFRJ, ex-diretor geral da ANA e da Aneel e atual presidente do CA da Eneva; Rafael Kelman, coautor deste artigo, é diretor da PSR Energy

Outros Artigos