A controvérsia da recuperação dos reservatórios

Comportamento das afluências favorece cenário menos tenso após o período seco deste ano, mas a meteorologia ainda é incerteza 

Um fato e uma declaração juntaram forças para alimentar o debate sobre o que esperar do Sistema Elétrico Brasileiro, que segue – e seguirá por muito tempo – dependendo do humor de São Pedro.

O fato foi a incidência de chuvas em dezembro e no início de janeiro, próximas ou acima da média histórica na área do subsistema Sudeste/Centro-Oeste (SE/CO), avivando as esperanças de reservatórios mais confortáveis em 2022.

Já a declaração coube ao ministro de Minas e Energia, Bento Albuquerque, em entrevista ao jornal Folha de São Paulo, em 1º de janeiro. “A crise de energia, a meu ver, nunca ocorreu. Passamos por um período de escassez hídrica que resultou no aumento do custo da geração…”, disse, segundo a publicação. 

A declaração é controversa.

Para o engenheiro Renato Queiróz, mestre em Planejamento Energético, professor da UFRJ e diretor do Instituto Ilumina, “o ministro deu uma declaração política e não técnica para falar de um setor eminentemente técnico”.

A frase do ministro está inserida no contexto de uma certa euforia gerada pelo surpreendente comportamento das afluências desde outubro, afastando expectativas de um iminente racionamento aberto no fim de 2021 e projetando dias menos tensos para quando chegar o período seco de 2022.

Roberto Brandão, do Gesel/UFRJ (Divulgação)

Sem entrar na polêmica sobre se houve ou não crise energética, o economista Roberto Brandão, coordenador de Geração e Mercados do Gesel/UFRJ, considera razoável que o ministro tenha dito também que houve muita capacidade adicional de geração nos últimos tempos. O técnico ressalta que, por efeito da persistente crise econômica que o país enfrenta há anos, desde 2015 a capacidade de geração do país cresce acima do consumo de energia. “Só uma não esperada recuperação econômica pode trazer transtornos em 2022”.

A análise de Brandão está assentada, no que diz respeito aos reservatórios, no comportamento da hidrologia favorável à inércia das afluências.

Essa inércia acontece, segundo ele, quando a umidade trazida pelas chuvas engrossa as nascentes e a evaporação dos caudais e lagos mais volumosos provoca novas chuvas. Nesse contexto, as afluências permanecem elevadas mesmo quando – como é normal nos verões – a meteorologia fica desfavorável e se passam de dez a 15 dias sem chover.

Quanto ao comportamento da meteorologia, Brandão apresenta elementos para lançar controvérsias sobre o que esperar para os próximos meses. Até recentemente, era quase unanimidade entre especialistas que, com La Niña de fraca a moderada atuação de janeiro a março sobre as águas do Pacífico Equatorial, teríamos um primeiro trimestre de muita chuva no Norte e Nordeste do país, pouca no Sul e insuficiente no SE/CO.

Márcio Cataldi, da UFF (Divulgação)

O meteorologista Márcio Cataldi, professor da UFF e ex-integrante da equipe do ONS, admite que os sinais ficaram um pouco embaralhados recentemente. Para ele, é certo que a primeira quinzena de janeiro será chuvosa no SE/CO, mas daí em diante está difícil prever.  “As previsões para o restante de janeiro, ou seja, a partir da segunda quinzena, e para o restante do período úmido ainda estão bem incertas, já que o Pacífico Equatorial está mostrando muita variabilidade, e os modelos não estão sendo capazes de reproduzi-las”.

De acordo com Cataldi, o atual período úmido está muito bom para o subsistema Norte e para a maior parte do Nordeste. Para o SE/CO, o subsistema decisivo para o armazenamento do SIN (corresponde a cerca de 70% do total), as chuvas estão muito próximas da média histórica, tendo ficado acima em outubro, no chamado pré-período úmido.

Então significa que não houve crise, como disse o ministro? Cataldi discorda com veemência: “Bem, chegar à casa dos 16% [16,49% em 06/10/2021] de armazenamento no SE/CO e dizer que não houve uma crise energética deveria ser considerado como a fala de um leigo”. Ele aponta o uso intensivo de térmicas fora da ordem de mérito e os esforços do ONS para flexibilizar as restrições hídricas nas diversas bacias como argumentos adicionais a comprovar que a crise efetivamente existiu.

Histórico recente não favorece

Com base na evolução dos armazenamentos a partir de outubro e nas perspectivas hidrológicas, além das medidas que foram tomadas para favorecer a recuperação dos reservatórios sem afetar a oferta de energia, o ONS, na transição do período seco para o úmido, traçou cenários segundo os quais ao final de abril deste ano o armazenamento no SE/CO alcançará entre 55% e 58%.

Um levantamento feito pela Brasil Energia nos dados históricos do próprio Operador (Boletim Diário da Operação – BDO) a partir de 2015 mostrou que o resultado previsto pelo ONS foi alcançado apenas uma vez no período pesquisado. Em 2015/2016, último período úmido excepcionalmente favorável, o armazenamento no subsistema SE/CO chegou a 1º de maio de 2016 com 57,60%, mesmo assim, partindo de um patamar já elevado em 1º de dezembro de 2015 (27,56%).

Em condições iniciais parecidas com as do atual período úmido, que partiu de 19,77% em 1º de dezembro de 2021, o melhor resultado é o de 2019/2020, quando o armazenamento na partida estava em 18,95% e os reservatórios do subsistema chegaram a 54,86% na abertura do período seco de 2020.

Naquele período, a aceleração aconteceu em fevereiro e março, quando o volume acumulado saiu de 24,90% em 01/02 para 51,56% em 1º de abril de 2020. Para este ano, se o comportamento de La Niña retomar o que era esperado no começo de dezembro passado, fevereiro e março seriam os meses menos favoráveis.

Mas, conforme ressaltado por Brandão, há outro dado que pode vir a favorecer o aumento do volume dos reservatórios, tanto no SE/CO quanto no Nordeste. É que o Plano de Contingência Para Recuperação dos Reservatórios do SIN, elaborado pela ANA em outubro do ano passado, restringiu em muito as defluências nos reservatórios estratégicos como Furnas, Itumbiara, Emborcação, Sobradinho e Serra da Mesa.

Mantidos os padrões de defluência, todos estabelecidos em resoluções específicas da agência que cuida das águas, o especialista avalia que o plano dará forte contribuição para que a meta do ONS seja alcançada. A contrapartida é a eventual necessidade de despacho maior de térmicas fora da ordem de mérito e suas consequências negativas sobre o preço da energia.

Renato Queiróz, do Instituto Ilumina (Divulgação)

Renato Queiróz, do Instituto Ilumina, destaca outros pontos, pelo lado da demanda, que podem atrapalhar os planos de recuperação ou encarecer mais ainda a energia. Na sua avaliação, 2022 sendo um ano eleitoral, a tendência é de que haja alguma recuperação econômica impulsionada pelo ambiente de eleições gerais.

Na mesma direção, um possível alívio da pandemia, considerando a hipótese de baixa letalidade da variante Ômicron, seria outro fator de estímulo à retomada econômica. E a perspectiva de temperaturas mais elevadas na sequência do verão, diferentemente das que prevaleceram até agora, poderia ser outro fator a pressionar o consumo de energia. “Então, chegar a este ponto com 28% de acumulação [27,80% no dia 04/01/22] não é ainda para comemorar. Eu não estou otimista”. 

A conclusão geral que fica é de que o clima de incertezas ainda prevalece, embora tenham surgido recentemente argumentos do lado positivo do ponto de vista do SIN.

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