Opinião

A abertura do mercado de gás já começou

Ainda que o debate atual esteja centrado em algumas divergências setoriais que precisam ser endereçadas, o caminho necessário para conectar suprimento ao mercado, de fato, já foi traçado

Por Paula Kovarsky

Compartilhe Facebook Instagram Twitter Linkedin Whatsapp

Para quem tem pouca idade ou memória curta, o gás natural virou assunto pela primeira vez no Brasil no fim da década de 90, quando finalmente o gasoduto Bolívia-Brasil ficou pronto. O Brasil na época consumia cerca de 23 milhões de m3/dia, e produzia 13 milhões de m3/dia.

Fast forward: o consumo de gás natural em 2019 atingiu 112 milhões de m3/dia. As distribuidoras representaram 57% deste volume.  Foram construídos 13 GW de capacidade de geração termelétrica a gás, A produção nacional de gás aumentou quase 9 vezes, com diversificação das empresas envolvidas na produção. Já o contrato de suprimento de gás da Bolívia está em fase de renovação, porém com disponibilidade substancialmente inferior devido à falta de investimentos em upstream naquele país.

Evoluímos muito em matéria de desenvolvimento do mercado? A participação do gás na matriz energética brasileira ainda é muito inferior a de outros países na Europa, Estados Unidos ou até da Argentina. Impossível negar que os números todos cresceram. Mas dava para ser muito mais.

Até bem pouco tempo atrás, a Petrobras era dona de praticamente 100% da infraestrutura de escoamento, processamento e transporte de gás natural do Brasil, criando uma barreira de acesso a qualquer produtor ou importador de gás às distribuidoras ou diretamente ao mercado, mesmo em Estados como São Paulo onde a legislação já permite venda ao consumidor livre desde 2011. Alguns produtores até ameaçaram construir sua própria infraestrutura, mas nenhum deles foi às vias de fato (por decisão ou competência, pouco importa), optando por vender sua produção para a Petrobras na boca do poço e dando a ela enorme poder de fogo como compradora da molécula e como única supridora. Em bom português um monopólio de fato.

Muito se fala agora do Projeto de Lei do Gás Natural como sendo o grande catalizador de uma abertura do mercado de gás natural no Brasil, permitindo que a crescente oferta global e local de gás natural finalmente chegue ao mercado, diversificando as opções de suprimento e fazendo com que os preços sejam mais competitivos. Preços mais competitivos seriam um grande indutor de demanda para o gás natural, ampliando inclusive seu uso, como aconteceu nos Estados Unidos com o advento do shale gás. Vale lembrar que a primeira redação do PL do Gás é de 2013. Já nessa época, um dos objetivos desse projeto de lei era o de promover mais competição para desenvolver a indústria de gás natural no Brasil.

Sem sombra de dúvida a discussão sobre regulação é extremamente importante. Precisamos de um arcabouço regulatório que promova competição, traga segurança e garanta atração de investimentos para o setor.

Mas a verdade é que essa abertura começou quando a Petrobras começou a vender ativos: 49% da Gaspetro para a Mitsui, 90% da NTS (malha de gasodutos no Sudeste) para Brookfield e 100% da TAG (malha de gasodutos no Nordeste) para a Engie. Ano passado a Petrobrás assinou um Termo de Compromisso de Cessação com o CADE, se comprometendo a se desfazer dos seus ativos de transporte e distribuição e garantir livre acesso a infraestrutura de gás natural. Um caveat aqui: seja para garantir um bom preço de venda para os ativos ou para conservar de alguma maneira sua posição dominante nesse segmento, a Petrobras deu garantia de 100% de utilização de capacidade nos gasodutos. Garantir a validade das regras existentes, que obrigam carregadores a disponibilizar capacidade não utilizada é portanto muito importante para tornar a abertura uma realidade. Por fim, o acordo entre Petrobras e três produtoras do pré-sal divulgado na semana passada para utilização dos gasodutos de escoamento de gás, aqueles que conectam os campos do pré-sal à costa, deu origem ao Sistema Integrado de Escoamento de gás natural (SIE).

Ainda que o debate atual esteja centrado em algumas divergências setoriais que precisam ser endereçadas, o caminho necessário para conectar suprimento ao mercado, de fato, já foi traçado. Sooner rather than later um produtor de gás diferente da Petrobras conseguirá vender sua produção para outros players e distribuidoras e consumidores livres terão finalmente alternativas reais de suprimento dessa commodity. O desafio agora é manter o foco e evitar que discussões pouco profundas se tornem pedras nesse caminho. O Brasil já perdeu tempo demais.

Paula Kovarsky é Head of US Office e diretora de Relações com Investidores da Cosan desde 2015, com mais de 20 anos de experiência no setor de Óleo & Gas

Outros Artigos